quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Novela infanto-juvenil "A rã gabarola"

I

Era uma vez uma casa pintada de amarelo com um telhado pontiagudo perdida no meio das grandes e longínquas montanhas que pareciam tocar o imenso céu azul. Tinha enormes janelas e duas grandes varandas gradeadas de azul que se debruçavam sobre o denso arvoredo e pareciam mirar atentamente a longa extensão de campos e de leiras que se alojavam à sua volta.     

O silêncio envolvia-a harmoniosamente com o seu manto suave e delicado. Apenas os animais que habitavam a enorme quinta cortavam noite e dia laboriosamente o seu silêncio com a orquestra dos seus sonoros e melodiosos cantos que se elevavam lenta e suavemente no ar. 

De quando em quando, ouvia-se ao longe o gemer cansado da velha nora ou o barulho dos gados pacíficos que recolhiam dos pastos quando o sol começava a declinar.

Não muito longe da casa, havia uma grande alameda ladeada de tílias frondosas que estendiam os seus ramos em direcção ao vasto céu como crentes prostrados em fervorosa oração. Os seus ramos acolhiam dezenas e dezenas de pássaros que entoavam cantos estridentes e sonoros que se espalhavam por toda a quinta e alegravam os dias em que o sol adormecido recolhia os seus lustrosos raios. 

Ao fundo num recanto abrigado por velhos castanheiros, encontrava-se uma enorme presa que regava tranquila e incansavelmente a quinta quando o sol de Verão dardejava os seus fortes raios e a terra secava rapidamente. A água corria abundantemente e formava cascatas constantes que deslizavam de leira em leira, de lameiro em lameiro levando o precioso líquido à enorme variedade de plantas que assim se mantinham vivas e viçosas.

Ao redor da presa cresciam robustos juncos muito verdes e aguçados, com folhas e caules cilíndricos e que pareciam enormes vassouras prontas a executar a sua tarefa.

Era Primavera. Os ovos das rãs formavam uma massa gelatinosa à superfície dos charcos. Dentro de pouco tempo milhares de larvas sairiam dos ovos e encheriam as águas de vorazes e ágeis girinos que durante semanas e semanas sofreriam as mais diferentes formas até se transformarem em robustas e vistosas rãs.

Era num desses charcos junto à presa que habitava Zini, uma robusta rã de pele húmida e viscosa e com dois enormes olhos esbugalhados que pareciam prontos a saltar. Era extremamente fútil e vaidosa. Passava os longos dias concentrada sobre si, alheada do que se passava à sua volta. Mirava-se constantemente nas águas turvas dos charcos gesticulando e fazendo mil poses, ficando fascinada com a sua imagem.

Dizia alto:  

– Sou a rã mais bela de todas! Claro que sou! Sou esbelta e encantadora! Não é de admirar que tenha tantos pretendentes e admiradores. Sou a rã mais invejada desta quinta! Se houvesse concursos de beleza ganharia o primeiro lugar! E seria de certeza por unanimidade!

Erguia a cabeça com ar triunfante e falava alto, muito alto, para que todos a ouvissem e esperava pacientemente que alguma das suas vizinhas ou amigas lhe tecesse um qualquer elogio.

Quando isso não acontecia, começava a cantarolar baixinho para disfarçar a sua profunda decepção. O silêncio das vizinhas e amigas magoavam-na no mais profundo da sua alma pois não sabia porquê os elogios que estas lhe teciam de longe a longe davam-lhe um estranho alento. A sua existência revestia-se então por alguns momentos de um brilho delirante. E tudo era belo, muito belo…

Mas por vezes apercebia-se de que as rãs suas amigas não estavam dispostas a ouvi-la. Nesses momentos Zini não era mais a mesma. O desânimo apoderava-se da sua alma e o seu coração tornava-se mais negro. Era como se repentinamente o dia tivesse perdido o habitual brilho.                                                                                                                                                                      

  Foi num desses dias que se dirigiu a duas ágeis libelinhas que passeavam com delicadeza sobre as mansas águas cobertas por largas folhas flutuantes que cobriam as águas turvas do charco. Perguntou com o coração exaltado e palpitante:

– A minha graciosidade não vos encanta? Não vos admirais com a minha beleza?

As libelinhas abriram então os seus pequenos olhos globosos em sinal de desacordo e responderam laconicamente:

– A beleza maior não se vê!

 – Compreendo – respondeu taciturnamente Zini. Mas a minha beleza é inigualável, não é?

Uma das sedosas libelinhas voando sobre as odoríferas flores amarelas dos nenúfares que pareciam suspensos por fios invisíveis declarou com a voz pausada e firme:

 – As flores dos nenúfares são belas, mesmo muito belas! Parecem executar o mais gracioso de todos os bailados. No entanto, não exibem publicamente a sua rara beleza.

 – Oh pobrezinhas! São ingénuas, muito ingénuas – retorquiu Zini com ar trocista e abanando a sua curta cabeça quase tão larga como comprida e levemente triangular.

– O que é que é que tu dirias se eu elogiasse constantemente as minhas quatro asas leves e impermeáveis, se eu me vangloriasse da sua transparência e das suas finas nervuras? Dirias que sou ridícula...

– Não! Diria que és um insecto engraçado. Gosto do teu voo horizontal.

Zini olhou em volta e disse para si num gesto de indiferença:

– São um bocado invejosas e traiçoeiras! Oh, se são! Fazem-se simpáticas, mas se eu fosse o pequeno e frágil girino que já fui comer-me-iam com enorme prazer. Depois seriam até capazes de jurar que não foram elas. Conheço-as muito bem. Aliás não são melhores nem piores do que qualquer uma delas.

Dia após dia o tempo decorria. Os campos cobriam-se de searas douradas que crestavam ao sol abrasador guardando no seu seio magníficas papoilas que pareciam mil botões vermelhos perdidos na vastidão dos campos. O trevo amarelinho atapetava o chão.

A rã dava então grandes passeios ao longo da larga alameda coberta de magníficas tílias frondosas e perfumadas e deliciava-se com a sua sombra. Não era raro ouvi-la dizer:

– Estou com a barriga cheia. Não posso comer tanto pois posso ficar mais gorda e estragar a minha beleza! Vou dormir a sesta debaixo destas belas árvores centenárias. Sou uma verdadeira rainha! Estes tufos são meu trono, estes ramos o mais belo dossel que pode adornar uma cama e este musgo que cobre o chão é o meu tapete!

Depois chegou o Outono. Os ventos gélidos e devastadores varriam as folhas multicolores que se desprendiam dos frágeis ramos num abandono mole. As árvores começavam agora a vestir os seus desalinhados mantos outrora tão belos e verdejantes.

A frágil rã desprotegida fugia dos ventos que, enraivecidos, fustigavam noite e dia a enorme quinta que agora parecia deserta, quase abandonada.

 Despediu-se então com enorme melancolia de todos os amigos e vizinhos dizendo:

– Vou fazer uma grande viagem até à Primavera. Só assim poderei suportar o frio. Terei saudades, muitas saudades vossas.

E com movimentos lentos, desceu rapidamente até ao fundo do charco, cuja superfície se tornou a pouco e pouco tão gelada que se podia caminhar sem dificuldade sobre ela durante horas e horas. Nele permaneceu enterrada no lodo, imóvel e num sono profundo durante vários meses.

Chegou de novo a Primavera. A seiva corria vigorosamente nas veias das plantas que lançavam no ar tépido os seus diferentes aromas. Os pássaros enchiam ar com o seu melodioso trinar. As abelhas zumbiam azafamadas e executavam magníficas danças na direcção do sol para que as suas amigas pudessem localizar, sem dificuldade, o precioso pólen. A natureza tinha agora uma luminosidade invulgar.

Zini acordou então cheia de vigor do seu profundo sono como acontece cada ano com milhares e milhares de rãs.

Estava radiante e fascinada com a sua liberdade e com a vida que em volta crescia viçosa. Deliciada deu um enorme bocejo, abriu ainda mais os seus olhos esféricos, esticou os seus longos membros posteriores e disse mirando-se na água do charco de onde tinha saído havia pouco tempo:

– Depois deste sono recuperador devo estar ainda mais bela! A minha pele está mais sedosa, meus olhos mais brilhantes e as minhas pernas mais ágeis. Estou apenas um pouco mais gordita, mas isso pouco importa pois não me tira a beleza! Sim, porque na verdade nada me tira a beleza!

Gesticulava e falava alto com uma voz rouca e estridente para que todos a ouvissem.

Os friorentos ouriços-cacheiros que se encontravam no seu abrigo de folhas secas desde o início do Outono mal a ouviram falar, ficaram logo irritadíssimos. O mais velho ainda ensonado e enroscadinho na sua toca disse:

– É horrível esta rã! Ainda agora acordou e já estou farto de a ouvir. Passa a vida a fazer comentários sem qualquer interesse!

O outro acrescentou com ar muito enfadado:

 – É incrível! Não podemos continuar a dormir o nosso sono reparador! É o que faz não ter nada que fazer!

– Há mais de cinco meses que não fazem outra coisa a não ser dormir, acordar por breves instantes e voltar a adormecer… Não me digam que não estão fartos de dormir – disse a rã dando vigorosos saltos com as pernas em forma de Z.

– Tu és diferente, não és? – disse  o ouriço mais velho com ar trocista –  Não dormes nada coitadita! Passaste o Inverno rigoroso ao frio e resististe. És uma heroína!

Dito isto, calaram-se todos e recolheram-se de novo na sua toca para continuar a dormir mais um sono comentando:

  – Que horror! É sempre a mesma conversa! Às vezes é tão parva e inoportuna, esta rã!

  – Se é…Uma chata! Já não posso mais ouvi-la – acrescentou a vizinha.

A rã sentiu naquele silêncio dos amigos um enorme desprezo. Então, uma grande mágoa invadiu o seu pobre coração. Sentia-se vexada, ridícula e pouco amistosa. Sentia no mais profundo da sua alma que tinha tomado uma atitude repreensível, imperdoável.

E, aconchegando-se debaixo do velho castanheiro, abraçou-o com a mesma ternura com se abraça um amigo e disse para si:

– Sou tão imprudente! Que horror! Em vez de lhes dizer que tive saudades, que senti a sua falta, que queria recuperar o tempo perdido, não, tive com eles uma conversa fútil, vazia, como se fôssemos dois desconhecidos.

Zini queria muito pedir-lhes desculpa mas faltava-lhe a coragem. E depois, eles tinham entrado de novo na sua toca e não ficariam de certeza nada contentes de serem importunados, pois mal a vissem julgariam que ela lhes vinha mais uma vez falar de si.

Disse baixinho.

– Agora já está dito. Não há nada a fazer! São assim as palavras…O melhor é não falar sem pensar para não passar a vida a arrepender-me.

    Resolveu então dar um passeio pela quinta para clarificar as suas ideias e também para tentar esquecer o ocorrido.

Depois de ter caminhado vagarosamente durante quase uma hora, parou para descansar um pouco junto de um fresco e sonoro regato onde cresciam por perto roxas pascoinhas.                                                                                                                     

   Aí, encontrou três belas crisálidas de onde saíam três belas e sedosas borboletas que dobravam e desdobravam delicadamente as suas quatro finas asas que pareciam feitas de tecidos exóticos, finamente bordados a fio de ouro e que rebrilhavam à luz do sol matinal. Também elas tinham acabado de sair do seu casulo onde tinham dormido o profundo sono de Inverno e entregavam-se agora com volúpia aos raios quentes do sol da Primavera secando as suas delicadas asas.

   – Como tudo é belo e fascinante! – disse a borboleta de asas  lilás e franjadas de branco piscando os seus olhos habituados à escuridão e dando algumas batidas hesitantes para desentorpecer as suas asas.

– O perfume das plantas inebria-me mas entontece-me. O canto das cigarras que chega aos meus ouvidos é belo mas estranho! É uma música que me embala sem no entanto me adormecer! Tudo isto é novo, muito belo mas muito esquisito – disse a borboleta amarela movendo com agilidade a sua cabeça arredondada.

– Concordo contigo – disse a borboleta azul enquanto bebia o líquido açucarado da corola da flor onde pousara – A claridade do dia é magnífica mas ofusca-me um pouco...

Zini mal as ouviu falar dirigiu-se rapidamente na sua direcção. Sem mais nem menos aproveitou para meter conversa com as três borboletas dizendo:

– As vossas cores são encantadoras! Sois bonitas, mesmo muito bonitas!

– A beleza para nós é secundária – ripostou de imediato a borboleta lilás abanando as suas delicadas antenas em sinal de impaciência.

– Está bem! Mas se temos o dom de ser belas, não o devemos desprezar. Eu sinto-me feliz, mesmo muito feliz, por todos os habitantes da grande quinta me acharem muito bonita – replicou a rã com ar arrogante e provocador.

– Enfim! É mesmo muito gabarolas! É pouco maior do que a mão de uma criança e julga-se muito imponente! Não deve passar de uma medricas que mergulha no charco ao primeiro alarme – disse baixinho a borboleta azul.

 A borboleta raiada de verde ziguezagueou à volta das flores até que pousando em cima de um tufo amarelo de pascoinhas declarou prontamente:

– A beleza maior é a que se tira da vida em cada instante que passa. A vida é fugaz. Não podemos desperdiça-la com futilidades que apenas agradam aos olhos. Dentro em pouco acasalaremos, poremos os ovos sobre a planta que deverá alimentar a futura larva, e a nossa vida já terá chegado ao fim. Por isso preferimos aproveitar o sol e voar em liberdade!

– Tens razão. – Deve ser magnífico e inesquecível voar pelos vastos céus azuis ou pelas claras águas dos oceanos!

– Dentro de pouco tempo experimentaremos o fascínio desta fabulosa aventura embora não tão distante nem tão alto! Isso será fantástico e inesquecível para qualquer uma de nós. Ainda não podemos voar para muito longe pois acabamos de abandonar o casulo onde estivemos fechadas várias meses. As nossas asas são ainda muito pequenas para suportar o nosso corpo mole. Por isso preferimos não nos arriscar a dar grandes passeios – exclamou a borboleta amarela agitando as asas.

Despediram-se da rã sem qualquer cordialidade dizendo:

– Até um dia…

– Fiquem mais um pouco – pediu delicadamente. – Gostei tanto de vos ouvir.

 – Não podemos perder tempo – disseram quase em coro as três apressadas borboletas que tinham ar de ser bastante sensatas.

– Até um dia – respondeu enfim a rã gaguejando e com ar resignado.

Começou então a caminhar ao acaso, olhando a vastidão do verde, os milheirais embandeirados e sentindo a frescura da grama que atapetava o chão. Sentia-se muito desiludida pois não sabia por que motivo aqueles insectos tão belos não apreciavam a sua beleza e lhe davam uma resposta que em pouco diferia da dada pelas libelinhas pouco tempo antes. E, bem via que não estavam nada interessadas em falar com ela.

 Caminhou durante muito tempo, perdida no espaço e no tempo, esquecendo por completo o enorme cansaço.

– Tenho que me despachar! Começa a ficar tarde – disse para si com ar preocupado abrindo ainda mais os seus olhos de íris dourada e pupila negra.

O dia começava a declinar. Já quase todos os animais tinham recolhido a casa. Apenas de quando em quando, encontrava um sapo rugoso e de olhos esbugalhados que aproveitava a semi-obscuridade para projectar a sua enorme língua e assim apanhar os incautos insectos. Por vezes encontrava também as diligentes formigas que transportavam arduamente sementes com o dobro do seu tamanho. Às vezes deslizando sobre as rochas ou sobre a erva via as pequenas crias dos caracóis que tinham sido abandonados pelos seus progenitores Defendiam-se heroicamente pelos seus próprios meios e tentavam encontrar um caminho no seu caminho. Produziam grandes quantidades de muco para poderem deslizar mais rapidamente.

– Estão todos muito ocupados! Não têm tempo para conversar, para me ouvirem, para fazerem amigos. São todos tão esquisitos – disse Zini em voz baixa.

Decidiu então regressar a casa pois aventurara-se por muito longe e desconhecia os perigos que a espreitavam. Dando grandes saltos ao fim de pouco mais de meia hora encontrava-se junto da grande casa amarela em frente da qual se encontrava um enorme portão verde ladeado de dois bustos que olhavam sinistramente com olhar colossal todos os que por ali passavam. As enormes portadas e janelas do rés-do-chão encontravam-se abertas. Os seus magníficos portiers de seda estavam recolhidos e tornavam a casa mais ampla e mais airosa.

 – Deve ser tudo fantástico, muito lindo – disse cheia de curiosidade.

Então foi crescendo dentro de si um enorme desejo de espreitar lá para dentro para ver como era a vida dos homens. A sua cabeça fervilhava de planos. Aproximou-se cautelosamente e escondeu-se atrás dos transparentes portiers que o vento fazia esvoaçar levemente. O seu coração batia tão forte que teve medo que alguém ouvisse as suas pancadas. E enquanto se agachava o mais que podia dizia para si:

 – Se alguém me vê será o fim de tudo! Meu Deus, isso não pode acontecer!

 Assim, aproximando-se pôde observar com grande espanto o enorme lustre na espaçosa sala de jantar atapetada de rosa. Viu ainda com nitidez as paredes pintadas de branco nas quais se encontravam antigos e belíssimos quadros.

Ouvia também distintamente o tilintar das loiças e dos cristais que a criada de avental branco dispunha delicadamente em cima da mesa, pois avizinhava-se a hora do jantar. Pôde ainda observar as belas peças de prata ordenadamente dispostas em cima dos antiquíssimos móveis e ainda os belos pratos da Companhia das Índias dentro de uma vitrina junto da ampla janela.

 – É tudo tão belo e cheio de histórias. Os pratos, os móveis, os quadros... – dizia para si sem se cansar e piscando os seus olhos muito salientes.

Observou ainda com ar espantado os exóticos espelhos que reproduziam fielmente tudo que neles se mirava.

– Gostava tanto de poder ver neles a minha imagem! Seria de certeza diferente da que vejo com pouca nitidez quando me observo nas águas turvas do charco ou da presa – disse para si Zini suspirando com ar desolado.

 Pôde ainda observar o enorme e lustroso piano de cauda. As suas teclas eram suavemente tocadas pelas mãos de uma graciosa menina. Agora ouvia mais distintamente do que nunca as suas notas harmoniosas.

Quantas vezes, na calmaria do dia ou no silêncio da vasta noite milenar, ouvira o seu som melodioso sem sequer imaginar de onde vinha! Agora compreendia por que razão por vezes os pássaros sustinham o seu voo rápido. Certamente que se quedavam para ouvir de perto o som que ecoava pela vasta quinta.

  Numa outra divisão ao lado observou os milhares de livros com as suas lombadas douradas e que encerravam milhares de histórias, de vidas e também muito conhecimento.

  – Que giro – disse Zini com o coração a bater . Gostava tanto de saber ler! Seria de certeza fantástico! Cada dia da minha vida seria iluminado pelo conhecimento e cada momento tomaria uma nova dimensão! Teria uma razão para ocupar o meu tempo livre. Talvez até me preocupasse menos com a minha beleza, com o meu aspecto!

 Começava a tornar-se triste. Invejava aquela vida de luxo, de sabedoria e de conforto que nunca conhecera.

Dizia baixinho: 

– Parece tudo tão perfeito, tão cuidado, tão harmonioso!

Começou então a acreditar que a sua alma tinha sido talhada para poder ser mais do que uma simples rã que vivia uma vida monótona no fundo ou na superfície dos charcos, esperando pacientemente o nascer e o pôr-do-sol e o ritmo das estações. Tinha anseios diferentes dos das suas amigas, até sonhos diferentes que ela sabia impossíveis de concretizar porque as contingências da vida a isso a obrigavam.

– Mas porque é que eu tenho que ser assim? – disse para si baixinho com ar desolado.

Pôs-se assim a sonhar com espaços amplos e airosos onde a sua existência se revestisse a cada instante de momentos diferentes e únicos e onde as suas ideias e os seus sonhos não fossem tomados como ridículos.

 Permaneceu absorta durante largo tempo até que dando um enorme suspiro disse para si:

– Gostava tanto de me contentar com o que sou! Seria tão feliz! De que me vale ter todos estes sonhos se não os posso ter? Até as efémeras borboletas são felizes e voam para onde lhes agrada! Eu, nem sequer tenho asas! Nem sequer posso voar!

 E, pondo fim às suas divagações dirigiu-se rapidamente para casa.

 Começava a sentir fome e por isso estendia com avidez a sua língua espessa e enorme.

Se encontrasse um gafanhoto tenrinho seria fantástico. Poderia encher a minha barriguita e recuperar a força! Mas a esta hora é impossível – disse para si semicerrando os seus olhos malandros.

Foi assim caminhando o mais rapidamente possível pois anoitecera por completo. A escuridão ofuscava-a impedindo-a de caminhar em segurança. Às vezes, sem saber como, parecia-lhe ver olhos atentos e perigosos espreitando na escuridão dos ramos das árvores.

 Zini, que nunca soubera o que era o medo, sentia-se agora bastante assustada.

Vinha ainda longe quando começou a ouvir distintamente as suas amigas. Como numa orquestra o coaxar das rãs emitia diversos sons que iam dos timbres mais fortes aos mais agudos. Ao longo do caminho os pirilampos com os seus abdómenes fosforescentes escondiam-se na folhagem emitindo uma luz forte que atravessava a escuridão apenas entrecortada pelo brilho baço da lua, aparecendo e desaparecendo como num passe de magia.

– O seu brilho é maior do que o das pedras preciosas! Diz-se que a sua luz atrai os companheiros do sexo oposto! São muito sedutores e criativos estes pequenos insectos – disse baixinho.

 Quando chegou já era noite.

As suas amigas estavam muito angustiadas pois não era habitual a rã ficar tanto tempo longe de casa e sobretudo sair sem dizer nada.      

 Nori, a sua melhor amiga, disse-lhe:

 Por onde andaste? Estávamos tão preocupadas e não sabíamos o que devíamos fazer. És livre, eu sei isso muito bem … Mas não podes deixar-nos neste estado. Somos tuas amigas! A tua dor é a nossa dor! 

– É verdade – acrescentou a sua amiga Junete. – Nunca se sabe o que te pode acontecer. Na quinta há muitos perigos! Sabes bem que os cruéis bútios são um grande inimigo, pronto a comer-nos! Já comeram milhares de rãs nossas conhecidas!

– Eu sei! Têm toda a razãodisse Zini esforçando-se para dissimular o seu enorme medo. – São uma ave de rapina detestável! A sua voracidade é horrível! E ainda por cima são precisas várias rãs para alimentar um só bútio! Só de me lembrar das suas garras e do seu horrível bico fico toda arrepiada e a tremer.

– Eu também fico toda a tremer. Gostava de ter poderes mágicos para os destruir um a um. Mas isso é apenas sonhos de uma rã – disse Junete.

 Resolveu então contar detalhadamente às suas amigam todas as aventuras do dia. Elas ouviram-na durante muito tempo fazendo mil gestos de entendimento.

  No fim Nori disse-lhe:

– Admiro a tua coragem! Arriscas-te muito! Gostava de ser como tu! Não queiras, no entanto, minha amiga, ser mais do que uma simples rã pois podes ficar bastante decepcionada. Eu não gostaria de te ver sofrer.

– É verdade – disse enfaticamente Zini. – Mas é com a luta dos que não se resignam com facilidade que o mundo avança!

– Mas tu não és o mundo, és uma rã.

Zini não compreendeu o que a sua amiga queria dizer e calou-se. Também não fez o mais pequeno esforço para o compreender. Às vezes tinha a sensação de que as suas palavras eram pesadas, duras, incompreendidas, como se fossem ditas numa nova linguagem, uma linguagem inacessível, só sua. As suas amigas amavam-na, tinha a certeza, mas não sabia se elas eram capazes de compreender o que dizia, se elas eram capazes de perceber os sentimentos contraditórios e profundos que habitavam a sua alma.

 Na sua cabeça havia um turbilhão de ideias. Resolveu deitar-se. Sabia que o sono reparador lhe restabeleceria a calma e clarificaria a sua mente atribulada e repleta de acontecimentos belos mas estranhos.

E assim os dias iam decorrendo com normalidade.

Todos reconheciam que Zini já não era mais a mesma. Tornara-se mais calada e mais pensativa. Às vezes passava a tarde inteira sem quase falar ou dizendo apenas o que era essencial. Dir-se-ia até que uma enorme e estranha melancolia se apossara repentinamente da sua alma inquieta e atribulada.

Ela própria às vezes tentava perceber porque motivo tinha tanta dificuldade em lidar consigo própria como se fosse estranha a si mesma, como se o seu eu fosse duas pessoas diferentes.

 

 

 

 

II

 

Certo dia levantou-se mais cedo do que era habitual. Estava ansiosa e muito agitada. Acordou as amigas que dormiam ainda o seu profundo sono.

– Acordem! Acordem depressa! Já dormiram demais! Tenho uma grande novidade para vos dar!  

 Qual é então a grande novidade? perguntou Junete abrindo e fechando rapidamente os seus grandes olhos.

A rã calou-se durante alguns instantes e depois respondeu prontamente:

 – Sinto-me mais vigorosa do que nunca! Sou o animal mais forte e robusto de toda a quinta!

– Tu, a mais vigorosa! – exclamaram  quase em coro as amigas dando estridentes gargalhadas que ecoaram pelas  leiras e campos.

– Sim, sou até capaz de calcar um boi e de o pisar com força fazendo-o lançar gritos de dor – disse com ar convicto e dando ao seu pequeno corpo um ar robusto.

– Calcar um boi!? Bela invenção! – disseram as amigas – Quem a não ser tu poderia dizer tais banalidades?

– É muito simples. Venham comigo ao prado e verão com os vossos olhos que não estou a mentir.

– Não arriscaremos a nossa vida deslocando-nos para tão longe, pois sabemos muito bem que o que contas são tretas. As tuas histórias são tão fantásticas que não temos capacidade para as compreender – disse Junete rindo sonoramente. – Agora vamos dar um pequeno passeio pois já estamos sem paciência.

Assim, semanas após semanas, os dias decorriam sem incidentes relevantes.

Todos os animais da quinta conheciam detalhadamente a insólita história e riam às gargalhada só de a ouvir contar.

Zini insistia sempre na mesma versão.

A pouco e pouco as suas amigas começaram a tentar perceber se naquela história não haveria alguma verdade. Tudo era muito estranho até porque Zini não costumava mentir.

Certo dia a rã Junete que já estava farta de falar sempre no mesmo assunto disse:

 – Reconheço que Zini não é bem como nós! É demasiado curiosa e até um pouco esquisita! Vamos perguntar às conhecedoras andorinhas que viajam todos os anos de país em país se algum dia viram uma rã calcar um boi.

– Tens toda a razão! É isso que vamos fazer. Não perdemos nada em fazer isso – declararam quase em uníssono as três amigas.

 E assim que as encontraram apressaram-se a contar-lhes com todos os detalhes tudo o que tinham ouvido.

– Não, nunca vimos o que acabam de contar – responderam em coro as andorinhas com a voz pausada. – É estranho porque já vimos coisas que poucos viram…Já vimos desertos escaldantes, regiões geladas e mares imensos. Já vimos grandes barcos que cruzam os enormes oceanos e deixam atrás de si um traço de espuma. Vimos até peixes que nadam e voam.

– Peixes que nadam e voam! – exclamaram incrédulas as três rãs franzindo o sobrolho e piscando os olhos.

– Sim, são os peixes voadores – esclareceu a andorinha mais velha. – Debaixo de água parecem peixes vulgares, mas quando se elevam abrem as suas barbatanas e parecem aves estranhas.

– Devem ser muito giros – disseram todas com os seus grandes olhos esbugalhados.

– Sim, – explicou a andorinha mais velha – mas as suas asas não batem como acontece com as nossas pois são, como disse, barbatanas.

– Mas continuem, por favor! Contem-nos mais coisas. Assim será como se nós também tivéssemos visto essas coisas maravilhosas – pediu timidamente Nori.

 – Já vimos plantas carnívoras.

 – Plantas carnívoras?! – perguntou Nori com ar admirado e recuando cheia de medo.

– Sim. As suas folhas possuem armadilhas para apanhar pequenos animais com os quais se alimentam – esclareceu a andorinha de peito mais negro.

– Que horror! Até as plantas são cruéis. Ninguém escapa… Estou tão arrepiada! – disse Nori.

– Ouçam queridas rãs! Há plantas que para se alimentarem afogam os pequenos animais em reservatórios cheios de líquido. Outras fixam as suas vítimas numa superfície muito pegajosa para depois as comerem.

– Coitadas! Que destino tão cruel! Ainda bem que não somos esses pequenos animais – disse Junete com ar aliviado.

– Por favor, contem-nos mais coisas – pediu Nori. – É tudo tão diferente e interessante. É tão belo

aprender!

– Já vimos Índios que ligam os pirilampos aos dedos dos pés para se guiarem à noite nos caminhos dos bosques.

– Pobrezinhos! Arrastados de forma cruel pelos pés dos índios – disse Nori com ar dorido. – Que

crueldade tão desmesurada!

 

– É verdade. E algumas damas colocam-nos nos seus vestidos brancos que parecem reflectir os mais belos raios da lua. Às vezes fixam-nos nos seus cabelos. Os pobres cansam-se e perdem a luz por alguns momentos, mas são logo abanados para que continuem a brilhar.

– Que suplício e que desumanidade! A vaidade ultrapassa todos os limites! Deviam ter mais cuidado para não se deixarem apanhar – acrescentou Nori com ar desolado.

– Os Índios são demasiado astutos e muito experientes. Capturam-nos agitando no ar carvões incandescentes na ponta de um pau.

 – Apanham-nos com carvões em brasa!? Não pode ser! Que crueldade – disse baixinho a rã  Papilote que ainda não tinha falado. – Os Homens têm cada ideia! E tudo isto só para satisfazer o seu ego sempre insatisfeito!

As andorinhas calaram-se.

– Continuem, por favor – pediu Papilote. – Gostamos tanto de vos ouvir. Contam coisas fantásticas que nunca poderemos ver. O mundo para nós é tão pequeno. E nós às vezes julgámo-lo tão grande!

– Não podemos. A história da rã vossa amiga levou-nos a grandes divagações. Temos de partir. Ainda que ficássemos, a nossa vida não chegaria para contarmos tudo o que vimos.

E assim elevando-se no vasto céu formavam pequenas nuvens que mudavam delicadamente de direcção como se executassem um bailado ao ritmo sintonizado da mais graciosa melodia.                                                      

  As três amigas foram ter com Zini que dormia tranquilamente a sua habitual sesta e contaram-lhe a sua conversa com as sabedoras andorinhas.

Esta ouviu-as atentamente abrindo e fechando os olhos esféricos.

 No fim disse-lhes:

– Ninguém sabe tudo, ninguém vê tudo. A minha verdade não é a verdade das andorinhas.

As três amigas mais uma vez entreolharam-se sem nada compreender e calaram-se durante alguns minutos.

Então Papilote abriu as suas enormes pernas, deu um salto e declarou:

– Só se virmos com os nossos próprios olhos é que saberemos a verdade. Porque é que somos tão pachorrentas e tão acomodadas? Devíamos aceitar a proposta de Zini e ir com ela ao prado para ver o que acontece. Pedimos ao nosso amigo coelho que nos acompanhe para que seja testemunha do que acontecer.

– Tens razão! É isso que vamos fazer – disse delicadamente Junete.

– Podemos ir amanhã ao prado ao nascer do Sol. Encontramo-nos todos debaixo do nosso velho castanheiro – acrescentou Papilote com ar simultaneamente delicado e trocista. – Ninguém pode faltar.

  – Claro que ninguém vai faltar. Estou certíssima de que será um momento delicioso e inesquecível, pois iremos ver o que nunca ninguém viu – acrescentou Papilote dando às suas palavras um ar de quem proferia uma afirmação muito séria.

 

                                   

 

 

 

                                                       

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

III

 

Chegada a hora marcada dirigiram-se a passos largos para o prado antes que o Sol se tornasse muito quente e secasse demasiadamente a sua pele pondo a sua vida em risco.

Zini, com a cabeça levantada dava enormes saltos e cantarolava baixinho velhas músicas tradicionais.

Mas no fundo da sua alma sentia-se muito nervosa pois na verdade nunca tinha visto um boi perto de si. Apenas duas ou três vezes vira as vacas turinas e malhadas que, tendo-se desviado do seu caminho, bebiam apressadamente água fresca na grande presa e que punham sempre o seu coração em sobressalto.

Ia tão nervosa que ao dar um salto torceu a perna direita tendo por isso grande dificuldade em se deslocar.

Papilote para atenuar a dor pegou numa folha de couve, fez-lhe uma tala que amarrou delicadamente com uma piteira seca que os podadores tinham deixado no chão aquando da última enxertia das vinhas.

– Fantástico! Pareces uma videira com um enxerto suspenso – exclamou Nori soltando estridentes gargalhadas.

– Ah! Ah! Ah! Que beleza! Será que este novo rebento vai dar uvas no próximo ano?! – disse Nori  rindo sonoramente. 

– Estás mesmo gira, amiga! Só falta colocar dentro da couve alguma terra e um bocadinho de água e dentro em pouco teremos deliciosas uvas a nascerem na tua perna –acrescentou Junete 

 O coelho abanava as suas enormes orelhas semelhantes a enormes tubos. Presenciava tudo muito calado. Aproveitava a pausa para roer um grande e viçoso nabo que recolhera do chão. Deliciado lançava abundante saliva o que ajudava a reduzir o enorme vegetal a papa em poucos minutos.

Como este não dizia nada, Papilote com ar trocista perguntou:

– Que achas da nossa amiga?

– O que é que eu acho? Oh! Está lindíssima, claro! – respondeu o coelho dando estalidos com a língua o que fazia lançar no ar minúsculas partículas de saliva.

E assim, coxeando um pouco, Zini continuou o seu caminho. Deixara de cantar as suas canções predilectas. Seguia de cabeça baixa e de olhos mortiços. De vez em quando olhava disfarçadamente à sua volta para ver se ainda se encontrava longe do prado. Desejava nunca mais lá chegar. Queria que a caminhada durasse horas, que o tempo parasse, esperançada de que algum acontecimento imprevisível viesse mudar o rumo àquela situação tão sufocante.

Decorridos alguns minutos chegaram ao extenso prado parcialmente cobertos de belos botões de margaridas. Os girassóis inclinavam o seu rosto singular em direcção ao vasto sol. A alguns metros avistavam-se as pacíficas vacas que com o andar sacudiam os úberes cheios de leite. Os bois chicoteavam-se com as suas longas caudas para afastarem os inoportunos insectos.

As bezerrinhas brancas pastavam com ar tranquilo ao lado das mães e engoliam apressadamente a erva para depois a trazer de novo à boca e a ruminarem com ar pachorrento pondo fora da boca a sua enorme língua luzidia.

  – E agora? – perguntou Papilote com ar convicto.

Zini tornou-se rubra. Depois a pouco e pouco empalideceu e disse para si:

– Bichos horrorosos! Que deselegantes! São uns mostrengos! Parece que lhes caiu em cima do corpo uma lata de tinta branca! Com aquelas tetas bem que podiam comprar um soutien. Não lhes ficava nada mal! Mas também tinha que ser feito de encomenda! Não lhes servia um qualquer.

– Não dizes nada? – perguntou  Papilote erguendo a cabeça com ar triunfante.

– Disse-vos que era capaz de calcar um boi, não foi?

– Sim, foi isso que nos contaste! Foi para isso que viemos – acrescentou e o coelho que nunca perdia uma oportunidade para humilhar a sua vizinha.

Zini dirigiu-se então com passos lentos em direcção ao boi mais pequeno que se encontrava na pastagem. A piteira que amarrava a tala tinha cedido um pouco e a couve aconchegava menos a sua perna. Tinha um ar ridículo e desprotegido.

Então fechou os olhos e subiu devagarinho para cima da pata do boi esperançada que este estivesse distraído e não se apercebesse da sua presença. O bicho, com ar enfadado, abanou as suas longas ancas, sacudiu as suas pernas, tocou de leve a pequena pata da rã que não parava de dizer:

– Ai! Ai! Ai! Ai! Ai! Ai!

 – Ó rã, tu que tens? – perguntou o coelho dando às suas palavras um ar sério que todos conheciam.

– Que pergunta é essa? Estou a calcar o boi, não vêem? – disse  esbracejando e esforçando-se por dissimular a sua enorme dor.

Todos perceberam que mentia. Estava roxa e a tremer. Sentia uma enorme dor nas membranas que uniam os seus cinco dedos.

– Tu a calcar um boi! Que bela ideia! Nunca pensei que fosses tão atrevidota! Ó amiga, tu és uma caixinha de surpresas – disse Papilote fazendo um enorme esforço para não desatar às gargalhadas.

 – Não acredito. Não foi o que vi. Não és capaz! Mas isso era o que todos nós já sabíamo– disse o coelho rindo tanto que se podia ver com nitidez os enormes dentes incisivos mais compridos em cima do que em baixo.

 - Mas sou! Sou capaz sim! – insistia a rã.

– Não... Claro que não és capaz – retorquia o coelho ininterruptamente. Ou será que preciso de usar óculos? O melhor é eu pedir uma luneta emprestada à velha coruja. Estou certo de que dará bom resultado!

– Salta de novo para cima da pata do boi se tens coragem! É tão triste ser medricas – disse o coelho com ar irónico abanando as suas enormes orelhas brancas

– Já o fiz. Não vou calcar de novo o pobre animal que está muito dorido! Coitado! Tenho tanta pena do pobrezinho! Só não viram como gritava porque não quiseram. Não sejam ceguetas – respondeu prontamente.

– Ceguetas e muito ceguetas! Claro que é isso que somos todos. Que giro! Daria até o título para uma canção de embalar.

Então desataram todos às gargalhadas dizendo:

– Quando chegarmos à presa teremos muito que contar aos nossos vizinhos e amigos. Será de certeza muito divertido! Teremos assunto para conversa durante muito tempo! Imaginem como será fantástico! Os dias enfadonhos e tristonhos vão finalmente acabar. A nossa presa vai tornar-se em breve um lugar muito conhecido.

E assim, sem se demorarem, pois o sol tornava-se muito forte, puseram-se a caminho de casa.

 De vez em quando sentavam-se um pouco sob as rochas ou debaixo das heras para repousar um pouco.

Zini sentia-se muito humilhada e não queria regressar.

Conhecia bem as dimensões que a história ia tomar. Sabia bem que as suas amigas encontravam em cada acontecimento um motivo para festejar, um motivo para trazer animação àquela presa tão isolada do resto do mundo.

 Pensou nas gargalhadas hilariantes do sapo e nos seus olhos esbugalhados de alegria quando ouvia alguma novidade, no grito frenético do galo que espalhava as novas por toda a quinta e se vangloriava até do que não fazia e nas cigarras que, com o seu canto estridente e sarcástico, não guardavam qualquer segredo. Conhecia bem estes bichos. Achava-os manhosos e malévolos. Sabia bem que a olhavam de lado porque reconheciam que a sua beleza invulgar não passava despercebida. Tinha ainda viva na memória a história passada no último Inverno quando a pata brava se apaixonara pelo galo. O gabarola não tinha sabido guardar para si a declaração de amor que a ingénua ave lhe tinha feito. Contara-a com todos os detalhes no seu canto matinal que acordava a manhã preguiçosa e sonolenta. Lembrava-se bem que o astuto galo, abanando orgulhosamente a sua crista vermelha, procurara por toda a quinta alguém que escrevesse sobre a forma de um soneto a bela declaração de amor e pretendia que a cigarra a interpretasse nas tardes soalheiras de Estio ao som de uma melodiosa orquestra.

Por causa disto a linda pata brava foi vítima da chacota de mau gosto de todos os animais da quinta. Até as cotovias que costumavam ser bastante sensatas se riram perdidamente quando ouviram tal história. A pobre passou a esconder-se e raramente saía a não ser quando já todos se tinham recolhido. Perdera assim a alegria de viver.  

Zini disse então:

– Custa-me caminhar. Está bastante calor! Eu fico um pouco a descansar e depois vou sozinha. Não se preocupem comigo pois dentro em pouco estarei recomposta.

– Não podes ficar sozinha – disse Nori, a sua melhor amiga. – É perigoso. Além disso, podes precisar de ajuda.

– Não, não é preciso. Não se preocupem. Estamos perto da nossa presa. Se eu não chegar dentro de meia hora vêm aqui ter comigo.

– Está bem – concordaram as amigas. – Mas promete-nos que vais directa para a presa.

– Prometo – disse constrangida.

 

 

 

 

 

 

 

 

IV

 

Assim que se viu sozinha refugiou-se sob uma pedra junto do pequeno laranjal. O sol quente causava-lhe um enorme mal-estar e um enorme cansaço. As suas belas manchas acastanhadas pareciam de um momento para o outro ter perdido a cor e o brilho.

Sentia enorme falta da vegetação abundante que crescia desordenadamente à volta da grande presa e da água fresca dos charcos na qual se banhara durante longos e deliciosos meses.

Meu Deus! A minha vida mudou tão depressa! Como é que tudo isto me foi acontecer!

Eis que agora repentinamente tudo mudara. Pela primeira vez percebia que não podia mais regressar ao local onde sempre vivera e que a sua vida tomava um novo rumo tão diferente daquele que desejava. Tinha a sensação que de repente a sua vida se tinha transformado noutra vida, que a sua pessoa se tinha transformado noutra pessoa.

Dizia alto para tentar retirar de dentro de si aquela ideia obsidiante:

– Não, não poderei voltar! Não vou poder suportar o ar trocista de todos os que habitam a grande quinta.

De repente calou-se. Escondeu-se o mais que podia, pois ouvia com nitidez o vozeirão das suas amigas que vinham procurá-la e o estalar dos pequenos arbustos que cediam à passagem do ágil coelho.

Um enorme vazio apoderou-se então da sua alma dilacerada. Por momentos sentiu-se egoísta, insensível. Sabia que a procuravam angustiados, esquecendo o sol da tarde que se tornava cada vez mais tórrido e mortífero.

Então sentindo-se desfalecer disse para si:

– Meu Deus! Pensar que tudo isto é por causa  do meu estúpido exibicionismo e desta minha maldita ideia de dizer que era capaz de calcar um boi! Não é possível! Só agora compreendo por que razão certo dia Nori me disse que eu não era o mundo mas sim uma rã. Ela percebia que a minha insatisfação é a minha condenação.

Os amigos desalentados continuavam pacientemente a sua busca infrutífera. As rãs tinham perdido a humidade da pele e começavam a recear que lhes acontecesse o pior. Mas nem isso as levava a desistir. Acreditavam que dentro em pouco levariam consigo a sua amiga que, provavelmente, se tinha perdido a caminho da presa.

Ali estavam todos a escassos metros apenas separados pela cobardia e pelo orgulho.

Depois a pouco e pouco o barulho diluiu-se até deixar de se ouvir por completo.

Zini sempre imóvel permaneceu horas e horas no silêncio do vasto dia, inebriada pelo cheiro adocicado das flores brancas das laranjeiras que caíam graciosamente e formavam um irregular tapete branco, debaixo do qual passavam de quando em quando as compridas e roliças minhocas com os seus brilhantes e numerosos anéis.

Zini progressivamente perdia as forças e começava a sentir-se completamente exausta. Agora, mais do que nunca, percebia que de um momento para o outro a sua vida mudara por completo. Perdera os tons róseos e brilhantes e tingira-se de tons cinzentos.

Disse para si:

– Não poderei resistir se não encontrar o mais breve possível um local com água abundante onde possa restabelecer a minha energia.

Apesar do profundo cansaço e da grande mágoa resolveu caminhar ao acaso embrenhando-se na vasta vegetação Afastava-se com o coração dorido do local onde se encontravam aqueles que tanto amava e onde tinha passado os mais deliciosos momentos da sua existência.

Ao fim de algumas horas encontrou num declive bordado de magníficos tufos de erva, um pequeno riacho que descia suavemente em cascatas cantantes por entre juncos e pequenos choupos.

Sem qualquer hesitação, Zini lançou-se vorazmente na água fresca e transparente e nela permaneceu horas e horas completamente imóvel!

 – Tão fresquinha! Vou ganhar energia... Vou sair daqui outra – disse para si com ar resignado.

 Acabou por adormecer vencida pelo cansaço.

Levantou-se já o sol estava alto.

 Abriu os olhos globosos e viu que estava longe de tudo e de todos. Uma solidão confrangedora apoderou-se da sua alma fragilizada. Julgou-se irremediavelmente perdida.

 Pela primeira vez pôs a hipótese de que teria de viver ali, longe de tudo o que tanto amara, completamente resignada e sem força para mudar o rumo das coisas.

– Tudo porque sempre quis para a vida belos sonhos, porque não me contentei com o que vivia e não quis fechar os olhos quando o desconhecido me fazia sinal.

Então, para exorcizar a sua dor, pôs-se a gritar aos quatro ventos que o seu sonho fora a sua condenação e os seus anseios a sua destruição. Depois, progressivamente as suas palavras tantas vezes repetidas foram perdendo o sentido.

 Calou-se. Percebera mais profundamente do que nunca de que tinha que encontrar forças, reagir. A sua vida iria extinguir-se se não encontrasse em breve alguém com quem falar, alguém com quem compartilhar aquele sufoco tão grande.

Resolveu então dar um passeio pelas redondezas com a ilusão de encontrar seres da sua espécie onde, sem mentiras, pudesse recomeçar uma nova existência.

Caminhou horas e horas.

Depois completamente extenuada estendeu-se debaixo de um velho plátano completamente rendida, tentando enrolar-se o mais que podia para se confundir com os musgos e a vasta folhagem.

Olhou longamente o céu encoberto por grossas e pesadas nuvens onde se lhe afiguravam desenhados intermináveis caminhos. Não se via uma estrela.

 Desalentada disse para si:

Até o céu, sempre tão luminoso, parece estar contra mim pondo a sua cara carrancuda para me entristecer ainda mais!

Aos poucos o cansaço venceu-a e os seus olhos cerraram-se. O seu sono povoava-se de sonhos felizes que equilibravam a sensação de abismo que a pouco e pouco tinha tomado conta da sua vida.

Acordou com o barulho dos pastores que levavam logo de manhãzinha os gados para as pastagens do lado esquerdo do riacho.

Foi nessa altura que reparou que não muito longe se encontrava uma figuras completamente estática que a irritava com o seu ar austero, desalinhado e inflexível.

– Que coisa é aquela? – disse para si com ar indiferente.

Olhou o seu velho chapéu, os seus sapatos sem solas, a sua roupa desbotada, o seu ar deplorável e achou por alguns segundos que entre eles havia até uma certa similitude.

 Essa semelhança irritou-a profundamente.

Dirigiu-se no entanto a passos largos para junto dele sem perceber por que motivo o fazia.

O desânimo era imenso. Encostou-se àquela estranha figura e sentiu um aconchego simultaneamente estranho e reconfortante, semelhante ao que sentia em pequena quando se aconchegava no calor do colo da sua mãe.

Disse para si:

A noite vai ficar fresca! Vou passá-la aqui...

 Deixou-se por isso, escorregar para dentro de um dos bolsos das calças já um pouco descosidos e que por isso o tornavam mais amplo.

Quando o sol começou a pespontar o horizonte arroxeado e a vida acordava no seu esplendor ouviu uma voz doce que lhe perguntava:

Dormiste bem? Sentiste-te aconchegada? Passaste bem a noite?

Zini olhou à sua volta tentando perceber o que se estava a passar.

Por breves momentos julgou ter enlouquecido e disse para si abrindo bem os seus olhos espantadiços:

Meu Deus, não pode ser! A minha necessidade de ouvir e de ser ouvida fazem-me ouvir vozes inexistentes. É a minha punição por ter sido tão ousada, por não saber ser o que sou.

Dormiste bem? perguntou-lhe de novo a voz.

Sim... Passei uma noite maravilhosa. Acho até que dormi demais.

Estou feliz. Tu precisavas.

  – Quem és tu? perguntou Zini com ar natural.

O espantalho estendeu os seus braços robustos. Abanou-os um pouco como para os desentorpecer e declarou com ar sereno:

Chamo-me Gavião. Sou um espantalho, apenas um espantalho que guarda há muitos anos as sementeiras destes extensos campos. Cumpro esta tarefa com dedicação como é dever da minha função.

Zini estava perplexa e feliz pois ao fim de tanto tempo alguém lhe dirigia a palavra e parecia interessar-se por ela.

Dando um pequeno salto saiu de dentro do bolso e sentou-se no braço de Gavião.

Disse então com ar descontraído:

– Disseste-me que guardas as sementeiras. Não ficas triste por assustar a passarada que povoa estas belas searas? Têm um ar tão inofensivo. Apenas pretendem encontrar alguma coisa para comer.

O espantalho com um sorriso de orelha a orelha declarou prontamente:

– Os pássaros com o passar do tempo perdem o medo e pousam no meu chapéu, na minha roupa e em todo o meu corpo. Alguns mais ousados aconchegam-se dentro dos meus bolsos. Adoro quando isso acontece pois ajuda-me a preencher o vazio, a solidão dos meus dias. A vida é tão triste e sem sentido quando estamos sós e não queremos estar assim. O pior é que só percebemos isso quando estamos sós. As coisas só adquirem sentido quando as não temos. É preciso saber guardar o que é valioso!

  – Sim, é verdade… Então eu também sou ousada como os pássaros. Dormi a noite no teu bolso – disse rindo.

  – És uma rã engraçada que não se cansa de inventar o mundo.

– Eu uma rã engraçada!?

– Sim, és e muito …

Zini ficou durante algum tempo sem dizer nada. Estava feliz pois finalmente já não se sentia mais derrotada pelo silêncio e pela solidão. Depois percebendo que o silêncio não se adequava ao momento declarou:

– Mas tu pareces saber tantas coisas. Porque é que tu tens de estar aqui sozinho?

– Isso é uma coisa que dificilmente tu irás entender a menos que... a menos que tu…

E morosamente os dias passavam. Zini continuava ali, junto do velho espantalho. Durante as longas tardes soalheiras do Estio, nas frescas noites de Outono quando os crisântemos ostentavam a pujança do seu florir, ou nas longas noites de Inverno, ela contava a sua dolorosa história e ria com as histórias do seu amigo. E a amizade entre ambos tornava-se tão forte que ninguém diria ser recente.

 Gavião ouvia-a sempre com ar enternecido, sem fazer qualquer comentário, sem qualquer condenação.

Certo dia, após madura reflexão Zini disse-lhe:

– Gavião, às vezes até tenho a impressão que concordas com as minhas gabarolices ridículas...

– Não, não é isso. Mas eu sei muito bem que às vezes o nosso sonho não cabe dentro daquilo que somos.   

Zini calou-se. Estas palavras parecem-lhe um enigma. No entanto ecoaram no mais profundo da tua alma e fizeram-lhe lembrar mais uma vez com enorme nostalgia a sua longínqua presa e o dia em que Nori lhe dissera que ela não era o mundo mas apenas uma simples rã.

– E se eu tivesse ouvido as palavras de Nori? – disse para si lançando um suspiro tão doloroso e tão profundo  que ecoou pelas louras searas e fez soluçar o vento ofegante.

– Se as tivesses ouvido tu serias apenas o que és e não a rã que és.

Zini estremeceu. E sem sequer perceber o que acabara de ouvir disse desalentada:

– Não! Não pode ser! Estou louca... Meu Deus, eu estou mesmo louca! Como é possível que tudo isto esteja a acontecer…

Gavião não dizia nada. O seu silêncio irritava-a ainda mais. Começou a abanar com violência os braços e as pernas, lançando à sua volta milhares de partículas de poeira que se elevavam no ar tépido e leve.

– Cuidado... Cuidado… Não faças isso. Vou perder o equilíbrio!

Zini respirou fundo para se acalmar e declarou sem qualquer reflexão:

        – Mas tu falas e sabes o que eu penso!

– Não te assustes – declarou Gavião com um brilho nos olhos – Durante estes meses eu pude ver que tu não és uma rã qualquer, que a tua alma é muito nobre e o teu coração muito generoso. Vou por isso contar-te a minha história. Para minha grande mágoa nunca a contei a ninguém porque isso não foi possível.

– É?! – disse atabalhoadamente Zini que queria dizer alguma coisa.

 – Sim, tu podes ouvi-la. Eu já percebi isso há muito tempo. Isso é fantástico. Acho até que percebi isso desde o primeiro momento que nos conhecemos. Certifiquei-me apenas que não me decepcionarias. Dei tempo para que a nossa amizade fosse ainda mais sólida e que tu me entendesses mesmo quando eu não dizia nada. O silêncio é o caminho para o conhecimento. Esta espera e este conhecimento criaram alicerces indestrutíveis na nossa amizade.

– O que são alicerces indestrutíveis?

– Quer dizer que a nossa amizade é muito forte e para sempre. E isso acontece muito raramente, porque ela coloca em cada um de nós um pouco de encantamento que é preciso saber manter.

– Que giro! Tu és tão especial!

– Eu não sou especial. É a amizade que sentes por mim que me torna especial.

V

 

Gavião deu um suspiro, abanou os seus braços, fechou os olhos e contou:

– Há muitos, muitos anos, quando os homens ainda percorriam os vastos mundos em busca de riquezas e de especiarias, a minha família vivia numa minúscula ilha perdida no Pacífico. Um dia, as caravelas fizeram paragem na nossa ilha para se restabelecerem de água fresca e de alguns mantimentos. Eu e dois dos meus amigos encontrávamo-nos na porta principal da cidade. Devíamos dar as boas-vindas aos visitantes. Mas os marinheiros acharam-nos tão bonitos e coloridos que trouxeram toda a minha família para embelezar as suas naus. Mas, quando chegámos não tinham que nos fazer. Foi então que um dos marinheiros resolveu levar-nos para a sua quinta e nos colocou num canto velho celeiro. Éramos coisa inútil! Sim, para eles tínhamo-nos tornado inúteis. Lá fomos ficando anos e anos até que, um dia, um dos caseiros da quinta viu que os pássaros comiam a maior parte das sementes que lançavam na terra e que as suas sementeiras ficavam cada vez mais reduzidas. Procurou no velho celeiro diversos materiais com os quais pudesse construir um espantalho. Para sua admiração encontrou-nos a um canto completamente esquecidos e empoeirados. Quando começou a levantar-nos apercebeu-se que as nossa roupas estavam carcomidas pelo tempo e que apenas as minhas se encontravam em melhor estado. Pegou em mim e, arrastando-me com violência, colocou-me no meio destas vastas searas onde agora me vês. A partir daí a minha solidão tornou-se enorme, pois era afastado uma segunda vez do local onde me habituara a viver. E estranhamente tinha-me habituado a viver ali, naquele grande celeiro e pensava que já não saberia viver noutro lugar e recomeçar tudo de novo.  

– Mas tu estás sem liberdade. Não podes sair daqui! Não te sentes sozinho?

– A liberdade não está nos nossos pés mas naquilo que somos! Também se pode ser livre quando se está aprisionado. Eu sou livre porque posso estar onde me apetecer e quando o desejar! Basta querer! E depois eu também não estou só! Vivi com os meus sonhos que eram grandes. Alimentei-me sempre de esperanças. Eu sabia que tu virias, ou seja que alguém viria um dia! É um velho segredo de família que foi transmitido de geração em geração!

– Um segredo de família! Que coisa gira! Não é possível!

– Sim, eu guardo comigo um belo segredo de família. Embora tu não tenhas pensado nisso, eu fui construído para parecer uma pessoa, para assustar. Mas se olhares bem para mim, vês que sou um humano sem coração de carne. Eu sabia que quando alguém ouvisse as minhas palavras e as entendesse sem grandes explicações os meus poderes tornar-se-iam ilimitados. E esta esperança iluminava cada dia da minha vida. E, essa esperança, nem todos tiveram o privilégio de o sentir. Só o avô do meu avô sentiu o fascínio desta maravilhosa descoberta mas apenas por pouco tempo. Infelizmente tinha-se enganado. O engano também é possível mesmo quando parece impossível...

– Então para ti as cores e as coisas não têm limites. É como se o teu mundo fosse o mundo da fantasia.

– Tens razão! Mas não é só para mim... Para ti também…

– Sim é verdade. Às vezes o meu sonho é demasiado grande, sem limites – disse a rã com ar desolado e sem compreender o verdadeiro sentido das palavras de Gavião.

– Tu também tens poderes. Só tens que fazer um pequeno esforço para descobri-los. Mas acho que não te esforçaste o suficiente. É preciso querer com muita força e acreditar de verdade no que se deseja.

– E o que é que eu tenho que fazer?

– Agora somos dois e a nossa amizade traçará limites fora dos limites. E nunca te esqueças de que foste tu que despertaste em mim esse poder. Quando os teus desejos forem muito fortes eu estarei aqui contigo juntando os meus aos teus. Já pensaste na força das nossas palavras e da nossa vontade?

– Já pensei nisso muitas vezes, mesmo muitas. Mas o medo do ridículo dizia-me para ter cuidado, para ser sensata e prudente. Às vezes é preciso ser prudente para se viver sem sobressaltos. A primeira vez que a minha ousadia quebrou os limites dos limites teve o fim desastroso que já conheces.

– Não deves considerar desastroso o que te aconteceu. Nada na vida é por acaso. Nada se faz sem que um elo se ligue a outro elo. Há sempre uma razão para as coisas mesmo que ela não seja visível.

  – Acho que tens razão.

Claro que tenho – continuou o espantalho – Foi a violação do que consideras proibido que te trouxe até mim. Já pensaste que foi a tua vinda que me tornou no espantalho que sou. Eu precisava de ti…Também não me encontraste por acaso…Por mim a tua vida mudará de rumo, se quiseres. É preciso que tu penses que orientação vais encontrar para ela. É um bem precioso que é preciso conservar e alargar.

Zini não dizia nada. Um turbilhão de ideias e de coisas novas assolava a sua mente. O melhor era não pensar em nada. Qualquer reflexão para a clarificar tornava-a ainda mais turva como água inquinada na qual se lança um minúsculo seixo branco.

Depois, como se nada mais tivessem a dizer, calaram-se Ficaram assim horas e horas olhando o horizonte encarnado e mais tarde as estrelas brilhantes no vasto céu. E ambos sentiam dentro de si uma enorme paz que trazia consigo uma enorme felicidade. Aspiravam a plenos pulmões o cheiro forte e penetrante da terra lavrada e esventrada pelo arado e que dentro em pouco acolheria no seu seio as novas searas.

E, ritmado pelas estações o tempo escorria moroso e inflexível.

Certo dia Gavião fazendo um enorme esforço para dissimular a dor que invadia a sua alma disse:

– Zini, há vários meses que te encontras aqui comigo. Não pensas em regressar novamente à tua quinta? É lá que está o que tu és. Foi lá que ficou o teu passado. Tu não podes abandoná-lo porque tu és esse passado. A cobardia não pode vencer-te!

– Gostaria muito de regressar. Mas não sei se terei coragem para fazê-lo. Eu já vi muitas coisas que me fizeram ver que a quinta é o meu mundo mas não é o único mundo! Eu já vi muitas coisas... Eu já vi a casa amarela...

Zini apressou-se a contar detalhadamente tudo o que vira na enorme casa.

Contou-lhe como os espelhos a fascinaram com a nitidez com que reflectiam tudo o que neles se demorava. Falou-lhe do som dourado e timbrado do piano, da graciosa menina que fazia ressoar o som das teclas por toda a quinta e também dos livros de lombadas douradas e com belas iluminuras que vira espalhados na ampla biblioteca.

     – De tudo o que me contaste eu percebi que os livros te fascinaram muito, minha amiga. Eu sinto-o. Porque não aprendes a ler? Assim no teu mundo tu terias acesso a outros mundos e o teu deixaria de ser tão restritivo ou seja deixaria de ter tantos limites. Os teus dias seriam mais belos porque seriam iluminados pelo conhecimento e não haveria nem trevas nem desconcerto sobre eles. Já imaginaste como seria fantástico e maravilhoso?

       Eu sei que é assim – respondeu Zini com a voz presa na garganta. – Foi isso que pensei no dia em que os vi abertos sobre a mesa. Fiquei fascinada quando vi as suas letras garrafais e contínuas sobre o papel bastante brilhante.

 – Cabe a ti fazê-lo... Só tu podes fazê-lo, porque só depende de ti!

       Como? – perguntou Zini com ar desorientado mas com a esperança a raiar-lhe o olhar.

– Tu sabes! Pensa bem no que te contei sobre os meus poderes e também sobre os teus. Não preciso de tos lembrar constantemente. Repetir muitas vezes a mesma coisa tira encanto às coisas! As palavras às vezes são desnecessárias e levam a mal-entendidos.

Certo dia, acordada pelos chilreios dos pássaros, acordou mais cedo do que era habitual.

Banhou-se longamente no riacho fresco e olhou-se várias vezes no espelho das águas para ver a sua imagem e tomar consciência de que existia. Precisava de encontrar um caminho no seu caminho!

Assim, dando saltos vigorosos, em pouco tempo chegou junto do amigo.

Como acontecia nos momentos mais difíceis, Zini mais uma vez permaneceu a seu lado sem dizer nada.

 Depois, sem sequer pensar no que dizia declarou com a voz tremente:

– Gavião, tenho pensado muito no que me tens dito…quero voltar à minha presa. É isso que eu

quero fazer... Mas que é que vou dizer quando lá chegar? Como é que eu vou explicar este

silêncio e este abandono? Não tenho nada para contar a não ser que te conheci… Acho que

não vão sequer acreditar numa amizade entre um espantalho e uma rã. Vão pensar que é mais

uma das minhas mentiras.  A vida não tem lugar para estas incoerências! Desde que o bicho é

bicho e o homem é homem que nunca se viu uma coisa igual... Eu não lhes posso… eu não

o contar isto! Tu sabes muito bem que eu tenho razão…

 Gavião olhava Zini com ar enternecido e analisava cada uma das suas palavras.

O seu passado surgia-lhe como um afloramento de rochas. Também ele, se achava diferente e não conseguia explicar a razão de tais sentimentos. Lembrava-se muito bem que quando era mais jovem os seus pais, julgando-se bons conselheiros, sempre lhe tinham dito para ser mais sensato e prudente. Sempre lhe tinham dito que devia abandonar o mundo da fantasia e devia encarar a vida de frente, sem névoas. Diziam-lhe frequentemente que evitasse os atalhos difíceis, os íngremes caminhos que traziam aventuras mas também grandes dissabores e abismos profundos.

Que fizera? Ouvira-os? Não. Os perigos seduziam-no e ele entregava-se rendido esquecendo as adversidades e as regras que pouco ou nada lhe diziam. Os pais pareciam-lhe demasiado racionais para que os seus argumentos se fizessem validar. Arriscara ouvindo e negando e o mundo aparecia-lhe total, inerte, pronto a ser moldado. E tudo era belo pois era isso que lhe dava a grandeza e o fascínio e o tornava diferente.

Por isso, naquela manhã fresca e cinzenta de Novembro as palavras de Zini causavam-lhe uma certa perturbação, um certo embaraço e sobretudo uma grande nostalgia.

Como poderia dizer-lhe que não fosse sonhadora se também o fora e admitia que ainda o era bastante? Como dizer-lhe que encarasse a vida com realismo se também ele se negara a fazê-lo? Como poderia aconselhá-lo se também para si os conselhos lhe tinham parecido regras que lhe dava prazer não seguir.

Ponderou maduramente o que devia dizer pois naquele dia sentia-se demasiado sensível e fragilizado para ser razoável nas suas declarações.

Disse então:

     Já que os livros te fascinam tanto devias voltar à casa amarela, desta vez para aprender a ler. Já uma vez te disse isto mas tu não levaste as minhas palavras a sério. Tu sabes que isso é possível, não sabes?

       Sim, claro que sim... Acho a tua ideia fantástica. Não posso esconder que também já pensei nisso muitas vezes Vou fazê-lo o mais breve possível. Pedirei ajuda à menina que tocava piano. Deve ser gentil e amável. Percebi-o pela forma harmoniosa e delicada com que tocava. As teclas são seres vivos que expressam sentimentos. A música é a voz dos sentimentos e a voz das palavras. Vou pedir-lhe, por isso, que me ensine a ler. Não será de certeza difícil.

       Claro que não é...

E assim animada pela ideia e pelas palavras do amigo começou a fazer planos, reformulando aqueles que se lhe afiguravam mais ousados.

“Agora tenho que eleger a prudência como minha conselheira “ – pensava para si.

No entanto duas preocupações anuviavam a sua vida. Como haveria de chegar junto da presa e da casa amarela? E se por acaso alguém a visse que diria, como iria reagir?

Certa tarde, inebriada pelo cheiro adocicado dos cachos maduros que pendiam das latadas e aconchegada na sombra dos braços de Gavião declarou após uma profunda reflexão:

 – Gavião, os nossos poderes são ilimitados, disseste-mo um dia e a cada passo mo lembras. Mas diz-me, como poderei chegar à casa amarela. Eu não sou como as libelinhas, os gafanhotos ou até mesmo os pardais. Eu não tenho asas! Eu não posso voar!

 – Ouve, vou revelar-te um pequeno segredo! Pensei que pelas pausas frequentes que dava à minha voz quando me falavas da quinta tivesses percebido o que queria dizer-te.

– Não! Não notei nada na tua voz...

– Quando quiseres regressar à presa farás o caminho em menos de meia hora. Estás de facto muito perto!

– Não pode ser! Caminhei horas e horas após a minha saída da quinta. Demorei dias e dias a chegar aqui.

– Isso foi o que pensaste. Na verdade cada vez que tomavas um caminho, retrocedias sem dar por conta na encruzilhada seguinte. Por isso, tu não estás nem nunca estiveste longe. Isso vai ajudar-te a regressar em breve., vai ajudar-te a decidir sem grandes hesitações. Foi assim desde sempre…. Mesmo os mais ousados reconhecem ter medo de quebrar o que aparentemente parece estável….É uma questão de defesa… E em poucos minutos, Gavião traçou-lhe com todos os detalhes o percurso que tinha seguido.

E após uma pequena pausa Gavião acrescentou:

– Sabes, às vezes tenho tanta vergonha de mim, pois admito que o facto de não ficar longe de ti me levou a incentivar-te mais insistentemente a partir. Não faria assim se a presa fosse longe daqui! É uma vergonha que eu tenho que confessar e condenar. Mas às vezes para não estarmos sós tomamos atitudes irracionais. Agora que já aprendi a viver sem solidão não saberia viver com ela.

Zini olhava Gavião com ternura. Compreendia tão bem as suas razões, aquela mágoa forte e penetrante. Também ela experimentara noutros tempos o mesmo vazio da alma, o mesmo isolamento, o não ter com quem falar. Lembrava-se que às vezes a solidão era tão forte que se sentia enlouquecer. Desejava tanto falar com alguém, fosse quem fosse, falar por falar, dizer por dizer.

Deu um pequeno salto sobre as madressilvas e declarou:

– És um grande amigo. É isso que interessa. Só o que é feito com a alma é importante!

E assim passaram o resto do dia planeando com todos os detalhes a partida no Sábado seguinte. Gavião encorajava-a a cada momento e vivia-o tão intensamente que quem o visse julgaria ser ele que ia partir,

E assim em catadupa os dias escoavam-se numa pressa irreprimível.

Com eles a apreensão surgia no seu esplendor, viçosa e enérgica. Mas Zini aprendera o suficiente da vida para não se deixar abalar. Os obstáculos surgiam-lhe agora cheios de encanto, um motivo para festejar na sua alma, pois provavam-lhe que a vida se rendia aos seus pés, que os sonhos tinham força, que tinham valido a pena.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

VI

 

O dia tão desejado e receado chegava enfim!

Zini tinha a voz embargada e tremente. O seu corpo parecia-lhe agora mais pesado do que nunca.

E toda esta angústia e este aperto no coração avivavam-lhe a memória e lembravam-lhe com nitidez brutal o dia em que tivera que se deslocar ao prado para mostrar a todos que era capaz de calcar um boi!

No Sábado marcado levantou-se cedo. Abraçou Gavião e proferiu profundas palavras de agradecimento.

Durante toda a noite repousou apenas por breves instantes, imaginando cada um dos momentos daquele encontro.

Partiu nessa manhã ainda o sol recolhia no seu peito maternal os seus lustrosos raios.

Ia lembrando e repetindo as advertências de Gavião temendo enganar-se. “Senta-te no peitoril do quarto da menina e aguarda” ”Aguarda com paciência o momento certo e verás que tudo correrá bem “

Zini assim fez.

 Ali permaneceu longas horas até ao anoitecer, embalada pelo canto das cigarras e dos grilos, pelo zumbir das abelhas, pelo miar doce dos gatos e pelo cacarejar contínuo da galinhas que orientavam os doirados pintos recém-nascidos nas traseiras da casa.

Quando começou a escurecer a menina abeirou-se da ampla janela para correr as suas vidraças.

Apercebeu-se então com enorme espanto que algo se mexia.

Assim que viu Zini disse para si:

– Pobre rãzinha! Tão abandonada! Como é que veio aqui parar! Vou levá-la para dentro. Deve estar cheia de frio. Não a posso colocar lá fora! Vai dormir enrolada no tapete do meu quarto e amanhã verei o que hei-de fazer.

    No dia seguinte, quando acordou apercebeu-se que a rã a olhava com um sorriso terno como se lhe quisesse dizer alguma coisa.

A menina preparava-se para a colocar no jardim quando ouviu uma voz doce mas misteriosa que lhe dizia:

– Deixa-me ficar contigo!

Colocou a rã na palma da sua mão e como se fosse natural ouvir uma rã falar disse:

– É uma boa ideia. Está decidido. Ficarás comigo. Passarás o dia no jardim e à noite vais dormir no tapete. Assim poderei contar-te como foi o meu dia. Terei sempre uma companhia…. E também para me ouvir tocar. Doravante serás a minha confidente.

Zini sentia o peito cheio de uma alegria indescritível. Era o que mais desejava. Era como se o mundo redondo estivesse ali ao seu alcance, como se a vida se lhe oferecesse toda numa dádiva bela e perene.

Apetecia-lhe gritar a plenos pulmões que esta traz alegrias impensáveis quando julgamos que já não tem mais nada para nos dar. Considerava-se uma privilegiada para quem os acasos da vida guardam coisas imprevisíveis e impensáveis.

Ali estava na casa amarela, a casa onde tantas e tantas vezes desejara entrar, a casa que lhe mostrara que a vida era muito mais do que a presa onde se banhara e em cujas águas o seu rosto singular se lhe afigurava o mais belo.

Agora compreendia porque motivo as libelinhas e as borboletas se tinham mostrado tão enfadadas no dia em que se vangloriava da sua beleza efémera! Elas tinham vivido o suficiente para aprender a ver as coisas com o coração e a viver da vida apenas o que é essencial.

E, todas as noites, a menina sentava-se aos pés da cama e colocava Zini no seu colo. Falava-lhe das suas alegrias, das suas desventuras, dos seus sonhos, dos seus anseios. O seu rosto expressava grande alegria e também grande felicidade pois já não estava mais sozinha.

Durante várias semanas Zini ouvia-a atentamente, sem nunca desviar o olhar, mas também sem nunca falar. Ela própria não sabia porque motivo tomava aquela postura. Não queria admitir que o medo a demasiado cautelosa. E essa cautela retirava-lhe a autenticidade. Essa prudência exagerada nada tinha a ver com a efusividade e a simplicidade do seu carácter.

Era tudo muito diferente. Aquele ambiente afigurava-se-lhe demasiado belo, demasiado luxuoso, demasiado requintado. Como não conhecia a menina temia que alguma das suas palavras não lhe agradasse e que tivesse de se ir embora, tendo por isso que abandonar o seu sonho.

Certo dia quando a sua amizade revelava já grande profundidade enquanto colocava a rã no jardim, como era habitual, menina desabafou com ar amargurado:

– Eu sei que tu me entendes! Tu és uma rã mas não és uma rã igualzinha às outras Se tu falasses, minha amiga, a minha felicidade seria ainda maior. Eu adoro tanto a tua presença! Ela enche tanto a minha vida e traz-lhe um colorido estranho mas fantástico. Um dia vou perceber porque é que tudo isto acontece. Mas eu vou ter paciência, vou saber esperar o tempo necessário.

Zini encolhendo-se um pouco e tremendo declarou:                                                                                                                                       

– Eu também adoro a tua companhia.

E, perante o espanto da menina, contou-lhe com todos os pormenores os acontecimentos ocorridos nos últimos meses. Esta ouvia-a espantada elogiando a sua coragem e a sua força.

 E, quando lhe revelou o seu grande desejo de aprender a ler, a menina deu um enorme salto de felicidade.

– Mas isso é o que eu mais quero!

Combinaram então que as aulas começariam no início da semana seguinte.

A menina sentava Zini junto ao piano e a cada uma das notas associava uma das letras do alfabeto. Zini repetia cada uma das letras inúmeras vezes sem nunca se cansar.

Em poucos meses lia já com alguma fluência, cada vez mais maravilhada com as coisas novas que aprendia.

– Agora já posso regressar à presa – dizia para si – Posso até ensinar as minhas amigas ou então deleitá-las com as magníficas histórias que aprendi. Acho que elas vão adorar ouvir-me. Para isso basta saber de cor algumas das histórias que aprendi. Nem sempre vou ter luz suficiente para as conseguir ler. Poderei até fazer isso nos longos meses de Inverno quando tivermos que ficar imóveis no fundo da presa por causa do frio. O tempo passará mais depressa!

As duas amigas estavam cada vez mais alegres com a companhia uma da outra.

Zini tinha agora os seus dias muito ocupados. De manhã visitava Gavião, à tarde passeava pelos locais mais frescos da quinta e à noite tinha as suas habituais lições. E conversava longamente com a menina.

Às vezes, durante a sesta, quando dava os seus largos passeios, sentia uma enorme vontade de se abeirar da presa, de ir ver os seus velhos amigos sem que estes a vissem. Lembrava-se bem qual o caminho que devia seguir. Disso tinha a certeza! Gavião tinha sido muito claro nas suas explicações.

Mas apesar de sentir uma enorme desejo de regressar encontrava sempre um a desculpa para não o fazer.”

Dizia então para s i: – “Vou fazê-lo na próxima semana”

E a próxima semana chegava e dizia de novo: ” – Não, hoje não, mas vai ser na próxima”

Os dias passavam e a rã continuava sempre a encontrar desculpas diferentes para adiar a partida.

Certo dia logo pela manhã, ouviu uma enorme cantoria. De imediato se apercebeu que eram os vindimadores que cantavam enquanto carregavam às costas em direcção ao lagar os cestos das uvas pelos locais da quinta onde não podia entrar qualquer carro.

  Apercebeu-se então que o Outono tinha chegado. Dentro de poucos dias era de novo o tempo de hibernar, de ficar imóvel na presa. Sabia que se não partisse o mais breve possível só poderia fazê-lo quando chegasse a Primavera. Tinha que se dirigir para a presa de imediato. Não tinha razões para o não fazer.

                       

VII

 

Resolveu partir nesse mesmo dia ao fim da tarde. Tomaria apenas o tempo suficiente para não ser apanhada pela noite. Assim não haveria a mínima hipótese de encontrar um pretexto para retroceder.

Quando nesse dia a menina colocou a rã no jardim, como era habitual, tinha os olhos cobertos de lágrimas e acariciava ternamente a pequena rã.

Evitou as despedidas e as palavras. Tinha a certeza que Zini viria vê-la com frequência. A sua amizade era recente mas as suas raízes eram inabaláveis. E por essa razão ambas se consideravam cheias de sorte. Tinham construído juntas o projecto de um sonho e isso era importante. Era o mais profundo da sua alma que se apresentava nu, liso, pronto a ser moldado!

Deixou a quinta logo pela manhã para ir visitar Gavião e passar o dia com ele.

Quando o dia começava a declinar e o chocalhar do gado quebrava o silêncio do fim dia, partiu.

 Caminhava apressada olhando a paisagem à sua volta para iludir a realidade. O melhor era não pensar em nada para seguir em frente com coragem

Passado pouco tempo começou a ouvir o vozeirão das rãs. Coaxavam animadas na grande presa aproveitando a frescura da tarde.

    Sem reflectir, a rã dirigiu-se com grandes saltos para o rebordo da presa. Assim que chegou sentou - se calada sobre os juncos olhando à sua volta sem pensar no que iria suceder dizendo para si:

– Agora já cheguei. O que tiver que acontecer acontecerá.

Progressivamente fez-se silêncio. As rãs olhavam-se incrédulas. Julgavam-se possuídas por uma estranha alucinação.

Uma das rãs fazendo sobressair os seus enormes olhos salientes disse em voz alta:

– Sê bem-vinda, gabarolas! Que nos vais contar desta vez! Não nos vais contar que aprendeste a voar, pois não?

– Não me admirava nada. A nossa rã é única. Vejam como voltou com ar sadio. Tenho a certeza de que não teve saudade de nenhuma de nós – acrescentou a outra.

Zini permanecia imóvel e calada ouvindo as constantes gargalhadas de desprezo, encorajando a sua alma com a lembrança das palavras reconfortantes de Gavião.

A pouco e pouco foi-se fazendo silêncio pois, um a um, todos os animais se recolhiam pois já era bastante tarde.

Depois, sentando-se com as três amigas debaixo do seu velho castanheiro, Zini contou mais uma vez todas as suas aventuras. Falou-lhes do seu projecto. Disse-lhes também que aprendera ler e como isso lhe trazia uma felicidade indescritível.

As amigas olhavam-na com ar orgulhoso e declararam:

– Tu és fantástica!

E tal como planeara, Zini sem se cansar contava e recontava as longas histórias que a menina lhe ensinara a ler.

 Em breve a fama das suas histórias era conhecida em toda a quinta. Os animais deslocavam-se de longe para a ouvir. Por vezes deliciados com o doce timbre da sua voz e pela magia das suas palavras adormeciam durante longas horas. Por vezes alguns deles, deliciados, voltavam para casa noite dentro.

Quando já não tinha mais histórias para contar, reformulava cada uma delas, inventando novas

personagens, novas peripécias, novos enredos e as histórias tomavam então dimensões

fantásticas.

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