quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Novela infanto-juvenil "Policote, um pequeno grande caracol"

                                                        I

 

Era uma vez um caracol viscoso, luzidio e robusto que vivia numa enorme quinta de uma abastada e gentil família, nos arredores de uma grande e bonita cidade no Norte do país.

Vivia como os outros caracóis, rodeados de mil árvores que na Primavera erguiam os seus belos ramos adormecidos pelo Inverno e se enchiam de mil flores odoríferas e maravilhosas.

Os pássaros encantados poisavam nos seus esguios e delicados troncos e entoavam maravi­lhosos e sonoros cantos que se estendiam pelo vasto horizonte azul e penetravam no coração das crianças que por ali perto habitavam. Os seus chilreios hilariantes levavam os outros pássa­ros a responderem e ecoavam um canto solene que se traduzia numa fabulosa orquestra delei­tante e estonteante.

As cigarras ociosas, eternamente frenéticas, cantavam dia e noite numa alegria imparável.

Os grilos, para quem a tristeza não tem lugar, lançavam nos ares tépidos os seus cris-cris constantes que alegravam o coração dos mais tristes.

Quando o Verão chegava, as árvores da grande quinta enchiam-se de belos e variados frutos que exalavam por todo o lado o seu perfume.

Policote, o caracol, dava então grandes passeios e apanhava aqui e ali o que mais lhe agradava. Sentia-se feliz com os seus manjares abundantes. Era frequente ao fim de um longo dia ouvi-lo dizer alto:

– Sou um rei. Está mais cheia do que um tambor.

E dava palmadinhas na sua gelatinosa barriga prestes a rebentar.

No entanto o caracol sentia no fundo da alma um enorme vazio. Não sabia porquê, nunca mais vira a sua única irmã, Helicolete, e supunha com grande mágoa que esta não esti­vesse viva ou então que errava por todo o lado à sua procura, triste e sozinha, numa busca in­fértil. Policote sabia bem o quanto esta busca era dolorosa. Durante os últimos meses também a procurara em vão mesmo pelos becos mais escondidos, pondo a sua frágil vida em risco.

Mas amava-a no mais profundo do seu ser e por isso os obstáculos diminuíam-se aos seus olhos.

A forte intuição de caracol levava-o a pensar que mais dia, menos dia, se iriam encontrar e que ambos celebrariam efusivamente esta vitória que tanto engrandeceria as suas vidas.

Então, com o coração cheio de esperança, dava consigo a dizer:

– Meu Deus, se a encontrar cantarei tão alto que as estrelas distantes me ouvirão e saltarei com tanta força que os meus corninhos delicados tocarão no alto céu azul. Serei feliz, muito feliz!

Mas veio o Inverno. O pequeno Policote desprotegido fugia das horríveis trovoadas que incandesciam o céu e também dos ventos que uivavam dia e noite e abanavam as árvores nuas da grande quinta. Fugia também das geadas fortíssimas que lançavam sobre a terra o seu manto branco que congelava os legumes e as árvores. Tremia receoso, pois lembrava-se com grande mágoa que fora num Inverno rigoroso que os seus amigos lhe tinham trazido a horrível notícia de que perdera os seus pais.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                          II

 

Ora, certo dia, quando o Inverno começava já a despedir-se resolveu aconchegar-se debaixo de uns pequenos arbustos que ladeavam a entrada da grande quinta e que começavam agora a verdejar.

Foi então surpreendido pelos gritos frenéticos de duas crianças traquinas e irreverentes que saltavam e da­vam gargalhadas sonoras e estridentes. O pequeno caracol ficou assustado uma vez que estas brincavam ali ao seu lado e pulavam desordenadamente. O coração começou a bater com muita força e a sua respiração tornou-se cada vez mais descontrolada. Es­tava com muito medo que estas o não vissem e o pisassem, tornando-o para sempre num ser inválido ou que o esmagassem até à morte. Então, para se proteger, acocorou-se ainda mais um pouco, olhou a lua que lá no alto espreitava flamejando e orou fervorosamente a Deus para que lhe concedesse mais algum tempo de vida pois não queria morrer sem pelo menos voltar a abraçar a sua querida irmã Helicolete.

De repente, reparou que mesmo ao seu lado se encontrava um carro estacionado.

Olhou longamente os largos e redondos pneus e concluiu prontamente que se se acocorasse nas suas ranhuras seria mais fácil escapar dos pés das crianças que ora se afastavam, ora se colocavam a escassos milímetros de si.

Uma voz estranha mas melodiosa parecia dizer-lhe:

– Vai! Vai pequenote! Não fiques aí! Sê forte e corajoso.

E assim seduzido por aquela voz encorajadora empreendeu o mais rápido possível a sua íngreme e interminável escalada instalando-se no carro com enorme dificuldade.

O tempo ia decorrendo sem que nada de novo acontecesse. O agitado coração começava agora a retomar a calma.

Mas, passado algum tempo, verificou que a dona da quinta se dirigia diligentemente para a viçosa horta para colher uma braçada de couves. Ficou tranquilizado pois pensou que finalmente esta iria levar as crianças traquinas para casa já que era bastante tarde.

Aproveitou para subir um pouco mais para se sentir aconchegado da humidade e do vento fresco da noite.

De repente, verificou que um homem de estatura média se aproximava do carro e que a dona da quinta também vinha na mesma direcção e que as crianças esbaforidas, abertas as portas do carro, queriam entrar ao mesmo tempo. Empurravam-se e gritavam o que levou o pai irritado a dar-lhes um valente puxão de orelhas. Observava tudo isto muito quieto, no silêncio noc­turno, apenas entrecortado pelo latir dos cães numa quinta vizinha e pelo choramingar das cri­anças mimalhas que sentiam as orelhas a arder e pela voz dos três adultos que conversavam indiferentes a poucos metros.

Passado algum tempo, notou com profunda amargura que a família se despedia e se preparava para entrar no carro. Uma enorme angústia apoderou-se da sua pobre alma solitária. Começou então a acreditar com veemência que o destino fatal e cruel tinha traçado que não passaria daquele dia. Como iria sobreviver quando o carro começasse a andar? Como poderia vencer a dureza do ar e o frio da noite?

Então, percebendo que se encontrava à beira do abismo, reuniu todas as suas forças e com uma agilidade que desconhecia subiu o mais rápido possível até chegar ao capot do carro.

Sabia, no entanto, que era apenas uma ténue vitória daquelas que a vida oferece e que é preciso saber guardar com grande cuidado, sem celebrar antecipadamente.

A dona da quinta abriu com dificuldade os enormes portões de ferro já um pouco carcomidos pela ferrugem e que gemiam carregando sobre si um enorme peso.

Posto o motor a trabalhar com um barulho rouco, o carro começou a deslizar primeiro por um estreito caminho juncado de musgos e de heras e onde se viam ainda rastos frescos das pegadas dos rebanhos e depois por uma larga estrada, primeiro devagarinho e depois mais depressa.

A velocidade enjoava Policote mas também o fascinava. Era uma emoção muito forte e inigualável deslizar vertiginosamente cortando o escuro da vasta noite milenar enquanto ao longe a lua o olhava com o seu rosto imutável e sereno. Teve que recolher um pouco os corninhos delicados para não sofrer qualquer lesão devido à enorme força do vento.

Às vezes perguntava a si próprio se este não teria danificado a bela concha em forma de espiral. Mas, prontamente considerava que isso não era importante. O importante era o que lhe estava a acontecer.

Nunca fizera uma viagem igual e por isso nunca mais a esqueceria. Sentia-se até um privilegiado para quem os acasos da vida guardavam coisas inesperadas, perigosas mas também fantásticas e inolvidáveis!

 Seria com grande alegria que a contaria detalhadamente aos seus amigos ou então à sua querida Helicolete quando enfim a encontrasse. Sim, porque não podia negar que no mais profundo da alma sentia que um dia, não sabia quando, a iria encontrar!

Era belo observar as nuvens com as variadas e mutáveis formas semelhantes a montanhas de neve onde dava vontade de esquiar. Gostava também de olhar as longínquas estrelas que lhe pareciam mil pontos fugidios no horizonte distante.

 Doravante nunca, nunca mais haveria de invejar o voo dos pássaros que cortam repentinamente o vasto céu azul nem o vento ágil e atrevido soprando com o seu ar de bailarino atrevido e desajeitado.

 Pensava então para si:

"Isto é uma maravilha! É muito mais divertido do que andar em cima de uma couve a balançar! Com a minha barriguita cheia não me falta mais nada!"

 Assim, ao fim de pouco mais de meia hora o carro começou a deslizar mais devagarinho pois tinham chegado a uma enorme cidade cheia de sons e de luzes multicolores e de anúncios florescentes e disformes no chão molhado da rua.

 Entraram então dentro da garagem de um enorme prédio todo revestido de verde e que se debruçava sobre o mar.

Policote começou a ficar bastante apreensivo. Só via escuridão e parede e os faróis dos carros semelhantes a olhos rasgados que perscrutavam incessantemente a escuridão. Começou a sentir um enorme mal-estar e uma profunda tristeza que dilacerava a sua alma atormentada.

Resolveu ficar quieto pois tinham sido tantas as vicissitudes daquele dia!

Entretanto, as crianças traquinas tinham saído do carro aos tropeções e retomavam as birrinhas dizendo:

– Puxaste-me os cabelos. Vou fazer queixa ao papá, parvalhão!

– Vai queixinhas pé-de-salsa, vidrinho de cheiro. Já lá devias estar. Deixa lá, até te levo ao colo para não te cansares – respondeu Filipe dando estridentes gargalhadas.

De repente, como se tivesse visto uma assombração, o rapazinho ficou de olhos esbugalhados. Tinha visto o caracol em cima do capot do carro e disse com um certo carinho:

– Olha que caracol tão bonito em cima do carro! É mesmo giro! Anda cá ver.

– Mentiroso – disse Inês. – O que tu queres é que eu não vá fazer queixa ao papá. Mas, não te adianta andares a inventar historinhas de caracóis.

Como o irmão continuava a insistir para que viesse observá-lo, começou a ficar curiosa. Para dissimular a sua profunda curiosidade e porque não queria que este se apercebesse que estava mesmo muito curiosa, pois seria vítima da sua chacota, dei­xou cair no chão um anel. Com o pretexto de o ir apanhar olhou o mais discretamente possível para o lugar que este lhe tinha indicado dizendo:

– É mesmo um caracol! Que nojo! É ranhoso! Só tem baba!

– Não é nada! – disse Filipe indignado com a pouca sensibilidade da irmã. – Tu é que és ra­nhosa!

A mãe que já estava farta de os ver discutir, pegou num chinelo que por acaso trazia calçado e zás, sem dó nem piedade, deitou o pobre caracol ao chão.

 Ali ficou enclausurado na escuridão e no silêncio longe de tudo e de todos. Uma enorme desilusão apoderou-se da sua alma e a pouco e pouco a solidão co­meçou a tornar-se opressiva e insuportável.

Então para se evadir, evocava com nostalgia as longínquas noites passadas na quinta onde o coro sonoro do coaxar das viscosas e luzidias rãs nos charcos e nas presas chegava ensurdecedoramente aos seus ouvidos. Lembrava o estranho piar do mocho, o palrar das pegas e das corujas que cortavam a noite com o seu voo sinistro e silencioso e com os seus olhos dirigidos para a frente e que arrepiavam os que as ouviam pois diz-se que trazem maus agoiros. Lembrava ainda os sapos de olhos es­bugalhados e de pernas ágeis e arqueadas saltitando agilmente pelas viçosas hortas e o som mavioso do rouxinol que encantava o silêncio da noite.

Tinha até saudades dos perversos ralos que tantas vezes tinham posto a sua vida em risco ao abrirem rapidamente na terra enormes galerias com as suas poderosas patas anteriores que mais pareciam pás hediondas.

Oh! Como desejava estar lá para blasfemar contra eles e lhes rogar as habituais pragas! Lembrava ainda o cuco matinal que lançava o seu som esganiçado e rouco por toda aldeia e que levava a empregada da quinta, moça solteira, a perguntar:

 – Cuco regougueiro quantos anos me dás solteiro?

Assim lá ia esperando ansiosamente para ver quantas vezes o cuco madrugador proferia o seu habitual cu-cu e assim poder saber quantos anos tinha ainda de esperar para encontrar enfim a sua cara-metade.

Tinha também saudades do tom cantante das águas frescas saltando de lameiro em lameiro no tempo das regas e do gado nas pastagens ruminando com ar pachorrento a erva que tinha engolido apressadamente pondo de fora a sua enorme língua da qual caía uma enorme quantidade de saliva.

E morosamente os dias iam decorrendo sem que nada de novo acontecesse.

 Percebeu então que as pequenas ninharias às quais dava outrora enorme importância não passavam afinal de pequenos nadas comparadas com a situação que estava agora a viver. Nunca mais haveria de reclamar inutilmente nem praguejar contra os céus invocando a sua má sorte.

Ia subindo lentamente pela parede acima para ocupar um pouco de tempo e sair da monotonia. Aprendeu a fome, a solidão, a sede, a escuridão e o silêncio duro e pesado!

Apenas de quando em quando, um abrir ou fechar de portas ou um acender e apagar de luzes quebrava momentaneamente o duro e confrangente silêncio. Outras vezes ouvia vozes que mal surgiam logo se extinguiam no rodopio imparável e frenético da vida.

Às vezes as duas crianças passavam também por ali e com ar indiferente diziam:

– Olha o caracol já subiu mais um pouco!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                                III

 

Certo dia, depois de já perdidas as esperanças de qualquer saída recobrou ânimo quando ou­viu as crianças dizer:

– Coitado do caracol! Está aqui há tanto tempo! Deve estar cheio de fome! E se o puséssemos lá fora no pequeno jardim que está em frente à garagem?

– Boa ideia. É isso que devem fazer – responderam prontamente os pais que já estavam sem paciência. –  Ainda bem que são crianças sensatas.

Assim, colocando-o num pedaço de cartão gasto pelo tempo que se encontrava no caixote do lixo conduziram-no com ar enojado até ao minúsculo jardim nas traseiras do grande edifício.

Agora podia de novo olhar as luminosas estrelas, o brilho e a face da lua, o vasto céu azul e sentir a brisa fresquinha e o orvalho da manhã.

Havia no entanto um grande senão. O barulho dos carros que deslizavam com enorme velocidade na grande rua mesmo ao seu lado ensurdeciam-no. Olhava os enormes prédios que o rodeavam com o seu ar austero e inflexível. As belas casas da sua aldeia que sempre considerara enormes pareciam-lhe agora muito pequenas, minúsculos pontos perdidos na vastidão do verde.

Os dias iam assim passando. Tinha perdido completamente a noção do tempo. Ali não havia as grandes ár­vores que largavam as suas folhas multicolores quando o Outono chegava, nem os campos brancos cobertos de neve ou de geada, nem as belas flores e pássaros que anunciavam a Pri­mavera, nem os deliciosos e frescos frutos de Verão. Apenas o sol era mais quente, por vezes mesmo abrasador. Isso percebia-o e por isso concluía que deveria estar no pico do Verão.

Assim viveu na forte solidão durante alguns meses até chegar o Inverno. As suas noites compridas e gélidas e os dias curtos e gelados tornavam-no tristonho e melancólico. Passou longos meses, oculto na concavidade de um velho tronco musgoso, completamente entorpecido e sem comer como era habitual. Embora permanecesse sempre no mesmo sítio, porque não podia sair dali, acordava sempre cedo. Gostaria tanto de acordar com o som rouco do galo patriarcal e polígamo que cantava cambaleando e com vontade de dormir. Tinha que acordar a manhã sonolenta e ensonada para lhe pedir a aparição deslumbrante do sol que devia iluminar os que precisavam de se levantar para trabalhar e também aquecer um pouco os que se sentiam resfriados.

Certo dia, quando se aconchegava debaixo de um macio tufo de musgo, acordado pela Primavera e pela rebentação das plantas e pelo fervilhar da vida conheceu três minhocas. Estas pareciam-lhe menos belas, mais roliças e até mais sisudas do que as que encontrava com frequência na sua longínqua quinta. Eram fininhas e escorregadias e pareciam-lhe até repugnantes. Conheceu também um pequeno caracol.

Com eles conversava nos longos dias de Verão e nas compridas noites de Inverno e nas frescas noites de Outono. Os temas não variavam muito. Falava-lhes sobretudo da sua quinta e de como amava a sua única irmã. Eles ouviam-no atentamente e abanavam o pescoço em sinal de entendimento para não perturbarem o seu discurso, completamente extasiados pelas palavras e pelo mutismo do silêncio que se erguia como deuses esfíngicos recortando habilmente o tempo.

Depois as minhocas e o pequeno caracol falavam também das suas preocupações, dos seus anseios, das suas inquietudes, dos seus amores e das suas alegrias. E a amizade foi-se tornando cada vez mais forte, cada vez mais sólida, sem reservas. Era como se se conhecessem desde sempre, como se o tempo se tivesse concentrado em apenas alguns meses e tivesse aniquilado sapientemente o vasto tempo.

Os dias, arrastando as suas longas horas, iam assim decorrendo morosos e sem incidentes relevantes.

 Policote ouvia ao longe por entre o casario branco o mar baloiçando as suas areias e bater violentamente contra as doridas rochas nos dias de tempestade.

O murmúrio das vagas, o forte cheiro da maresia, o perfume doce do sal e o vaivém constante das gaivotas que se refugiavam em terra nos dias de temporal, dava-lhe vontade de conhecer aquela vastidão de água que ouvia distintamente e da qual às vezes sentia o cheiro penetrante e forte.

Imaginava uma costa sem limites, branca de espuma. Vi-a cheias de dunas fantásticas. Nelas podia ouvir os soluços e o bater do coração da rebentação. Gostaria de vogar em liberdade e observar os rubros e incandescentes pôr-do-sol semelhantes a nenúfares suspensos nas águas espelhadas. Às vezes imaginava-se a dormir embalado pelo perfume dos arbustos encastrados nas dunas que o vento forte fazia beijar como num ritual árabe.

 – Gostava tanto de ser peixe durante algum tempo para poder percorrer o mar – dizia com o cora­ção a saltar-lhe de emoção.

Foi durante uma dessas profundas e nostálgicas divagações que apareceu uma vistosa e delicada Fada que sem qualquer introdução lhe disse:

 – Vem comigo conhecer o mar do qual apenas ouves alguns sons. Vais ver como é fantástico e grande!

– Mas é assim tão grande?! É muito maior do que um charco, uma presa, ou um tanque?

– Não é sequer possível comparar – disse a Fada sorrindo e encolhendo delicadamente os seus graciosos ombros. - Vem comigo e verás!

Policote nem sequer pensou duas vezes. Porque haveria de fazê-lo se era o que mais desejava havia muito tempo?

 

                                                          IV

 

Colocou-se prontamente em cima da varinha da Fada enquanto se despedia apressado dos seus amigos. E, dando pulos em cima da fina varinha, sentia enorme vontade de dizer à Fada que partisse o mais breve possível.

E, embora não o confessasse Policote temia que a Fada mudasse as suas intenções e destruísse o sonho que apenas via começar.

Então percorreram lentamente o vasto mar que a lua, deliciando-se, acariciava com o seu rosto singular.

Caminharam por entre as planícies de areia fina, pelas pradarias de conchas multicolores e pelas águas que ora eram mais agitadas, ora mais calmas.

Pôde assim observar as vistosas anémonas-do-mar com o seu ar mole e com os seus numerosos tentáculos. Pareciam cilindros fixados nas rochas ou no solo com fortes ventosas. A sua boca ocultava-se magnificamente debaixo dos tentáculos como se uma feiura indizível a tivesse talhado.

– Que plantas tão lindas!

Com ar maternal a Fada corrigiu.

– Não são plantas. São animais. Há por isso quem lhe chame animais -flores.

– O mar é tão diferente – disse Policote com ar pensativo. – Há plantas com forma de animais e animais com forma de plantas. É tudo tão perfeito, mas tão estranho! Eu nunca imaginei que fosse assim. Que pena que eu tenho de não poder levar o mar para a terra e de não poder trazer a terra para o mar. Imagina como seria fantástico se as plantas e as flores se enchessem de maresia e de sal e se o perfume do mar se misturasse com o cheiro das rosas, dos lírios, dos cravos, do alecrim e do tomilho!

– És um sonhador! E eu gosto de ti assim disse a Fada com ar orgulhoso.

E depois de alguns segundos de silêncio a Fada declarou:

– É o sonho que acrescenta as nossas vidas. É ele que transforma o nada em muito.

– Se é disse Policote. É por ele que eu estou aqui.

E lá foram nadando sem parar durante horas e horas ouvindo às vezes o arfar rouco do mar que parecia deliciar-se no seu ar cansado.

Às vezes roçavam tão de leve o fundo do oceano que podiam ver com nitidez os cofres repletos de ouro e de marfim e os barcos naufragados que guardavam no seu seio velhas ânforas que outrora tinham carregado magníficas especiarias.

Outras vezes tinham ainda que enfrentar os inesperados redemoinhos, as trombas marítimas e as fortes correntes que faziam estremecer o fundo do mar. Por vezes quase ficavam presos nas algas emaranhadas. Tinham ainda que se desviar dos deslumbrantes cardumes que sentindo-se ameaçados nadavam velozmente com ar enfurecido em direcção aos seus recônditos esconderijos.

Viram então as vorazes estrelas-do-mar com o seu corpo simétrico e achatado e com os seus ágeis braços munidos de pequenas pinças.

Parecia que participavam num desfile de moda em que cada uma exibia delicadamente o vestido da sua cor predilecta magnificamente talhado sobre os seus cinco braços e que flutuavam sobre as águas de reflexos azulados e prateados.

Primeiro apareceram as estrelas-do-mar vermelhas deslocando-se lentamente, depois a cor de malva, as cor-de-laranja e por fim as violeta.

– São tão bonitas, mesmo muito bonitas – exclamou Policote com olhos tão abertos que pareciam ter dobrado o seu volume. – Devem ser muito vaidosas! De certeza que passam horas a mirar-se ao espelho das águas e a fazerem concursos para ver qual delas tem a cor mais bonita!

– Impossível, quase impossível – esclareceu a Fada. – As estrelas-do-mar só são sensíveis às variações da luz; não distinguem nem as formas nem as cores. Os seus olhos são muito rudimentares, muito parecidos com os insectos vulgares que vês em terra.

– Que pena! Não podem ver que são tão bonitas. Às vezes a natureza é tão cruel.

E continuaram pela vastidão do largo oceano magnífico e transparente, nadando sem nunca perder o fôlego.

Viram os polvos com dezenas de vento­sas em cada braço e com os dois enormes olhos de pupila rectangular e um impressionante olhar lúcido e perturbador. Puderam ainda ver de muito perto os rápidos e vorazes tubarões com forma de foguetão sempre acompanhados das rémoras que não querendo fazer qualquer esforço para encontrar alimento esperam pacientemente para apanhar os restos de um faustoso banquete. Viram também nos mares quentes as raias de corpo achatado como se tivessem sido prensadas e que se escon­diam na areia movediça deixando apenas de fora os olhos sempre atentos com as suas arcadas proeminentes.

 Puderam ainda observar as orcas assassinas e assustadoras, os cachalotes, os inteligentes e solidários golfinhos, as baleias e as focas com o seu gracioso corpo fusiforme.

Policote demorou-se um pouco para observar os enormes caranguejos com o seu ar sempre furioso e que se moviam com enorme rapidez fazendo chocar as duras carapaças com um barulho de elmos de guerreiros.

Policote esticava o pescoço o mais que podia pois queria observar atentamente tudo o que o rodeava. Percorria a varinha de condão de uma ponta à outra sempre a baloiçar, cheio de curiosidade.

Foi por escassos milímetros que não tocou numa tremelga.

 – És muito imprudente, mesmo muito imprudente... Deves ser mais cauteloso – disse a Fada num tom repreensivo.

Policote não compreendia o porquê de tantas advertências. Porque motivo a Fada havia de ser a voz da sensatez? Porque motivo havia de o chamar à razão? Porque não o deixava sonhar e enveredar por íngremes atalhos para os quais tivesse que encontrar uma saída?

Apetecia-lhe tanto, mas tanto, deslizar no dorso daquele peixe tão plano, tão comprido e tão perto si.

 – Gostava de passear pelo vasto mar cavalgando nas suas costas. Não daria conta da minha presença. Eu sou tão pequeno!

– Tens de ter juízo! Toda a gente sabe que a tremelga produz fortes choques eléctricos naquele que a toca deixando-o como se estivesse morto.

– Que horror! Estou muito, muito arrepiado! Mas é tudo tão lindo, tão variado e eu tenho tão pouco tempo – disse o caracol lançando um suspiro tão forte que ecoou nas profundas e buliçosas águas do oceano.

– É melhor regressarmos a terra, meu amigo. Os perigos são muitos e tu não és mesmo nada cauteloso.

– Não! Por favor – suplicou o caracol abanando melancolicamente os seus dois pares de corninhos. – Deixa-me ficar mais algum tempo! O mar é maravilhoso e os animais e as plantas tão diferentes!

– Só mais um pouco – condescendeu a Fada.

Policote não cabia em si de contente pois era aquela resposta que tanto queria ouvir.

E assim caminharam lado a lado em silêncio durante algumas horas. Sentara-se na varinha da Fada pois começava a ficar cansado.

– O mar é tão lindo – exclamou mais uma vez  com ar enternecido. Mas eu já devia ter imaginado que assim era quando ouvia ao longe o seu som rouco e austero e sentia a força da sua voz no cheiro intenso e doce.

– Mas é perigoso – ripostou a Fada – A beleza e a elegância dos animais e das plantas que nele habitam é uma armadilha para os incautos.

Policote tornou-se repentinamente pensativo e entrou numa profunda e estranha melancolia.

Depois, cortando abruptamente o silêncio disse suspirando:

– Também há homens como as raias. Por trás de uma aparência gentil e delicada escondem grande perigo e falsidade.

– Nada na vida é totalmente perfeito – acrescentou a Fada com melancolia.

Então observou longamente as bonitas e cristalinas medusas que se deslocavam por sacudidelas no mar agitado e arrastavam a sua bela cabeleira de longos e finos filamentos.

Sentiu um forte arrepio que se estendeu até à sua concha.

– Que grandes – disse surpreendido . – Sou apenas um minúsculo ponto!

– Há medusas que chegam a atingir três metros de diâmetro – disse delicadamente a Fada sem despregar os olhos do seu protegido.

O caracol estava radiante pois nunca tinha visto um animal tão estranho. Pareciam-lhe enormes cogumelos boiando ao sabor das correntes do mar. Apetecia-lhe tocar aqueles tentáculos excepcionalmente longos.

– Gostava de poder recolher alguns daqueles filamentos para poder fabricar um guarda-sol para oferecer à Helicolete.

– Um guarda-sol? Porquê um guarda-sol? – perguntou a Fada admirada.

– No Verão, Helicolete poderia abrigar-se do sol. Seria exótico e fantástico. Assim ela poderia ter uma ideia da beleza que o mar esconde!

 – Nem penses – esclareceu aflita a Fada. – A cabeleira graciosa que vês é um reservatório de veneno que provoca naquele que a toca uma comichão horrível, como se fosse picado pelas urtigas.

– Ai! Mas são tão transparentes, tão bonitas! Quase se confundem com a água! - disse Policote com um ar desiludido.

– Ouve bem! No meio dos tentáculos atraentes encontra-se uma enorme boca quadrangular e com franjas. Aquele que entrar na sua massa gelatinosa vai ao encontro da morte.

 – Que horror – disse o caracol encolhendo os  cornos e tremendo de tal forma que por pouco não escorregou da varinha de condão.

– Cuidado! – Podes escorregar. Se te aproximares muito podes ficar paralisado pelo veneno.

– Por favor, leva-me daqui. Tenho tanto medo...

Recolheu-se rapidamente dentro da sua casa como se lhe tivessem tocado, tapando rapidamente a abertura com a possante lâmina de calcário.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                           V

 

Assim, nadando vagarosamente, regressaram à praia. As algas baloiçavam-se nas águas transparentes como se executassem um harmonioso e exótico bailado. A maré estava vazia e a praia cheia de gente. Os rochedos semelhantes a enormes montículos estavam cobertos de búzios, de conchas, de anémonas e de limos. Aqui e ali viam-se à tona da água restos de sargaços e também de espuma branca que estremecia à mais leve aragem como se fosse tocada por mãos invisíveis. Parecia intermináveis caminhos ornados de renda finamente talhada e magnificamente estendida por mãos invisíveis.

Policote recolheu sem perigo duas conchas brancas e pequeninas.

 – Agora sei o que é o mar! – disse encostando-as ao seu peito que vibrava de emoção.

A Fada trouxe-o de novo ao jardim dizendo:

– Um destes dias virei ver-te.

Desapareceu tão rapidamente como tinha chegado. Policote não teve sequer tempo de se despedir, de lhe agradecer ou de lhe pedir que ficasse mais algum tempo.

Nos primeiros tempos contava efusivamente aos seus quatro amigos as suas aventuras.

Mas os meses uns atrás dos outros iam passando. Com o decorrer do tempo Policote começou a tornar-se cada vez mais triste e apreensivo. Permanecia horas e horas absorto, olhando o casario e escutando o murmúrio das vagas.

Agora conhecia a inolvidável beleza do mar que comparava à inigualável beleza da sua aldeia! Uma grande saudade invadia a sua alma desalentada. Os amigos começaram a recear que acontecesse o pior e não sabiam o que fazer.

Às vezes quando a saudade era tão forte que era difícil de suportar, recordava com profunda nostalgia os seus longos passeios pelas hortas, pelas leiras, pelos pomares e pelas vinhas da quinta. Às vezes parecia-lhe que sentia no ar o cheiro doce das ameixoeiras, das cerejeiras, das macieiras e das laranjeiras floridas. Outras vezes parecia-lhe ouvir os magotes de homens que se dirigiam cantando para as colheitas.

 Lembrava muitas vezes o dia em que se embrenharam na mata contígua à quinta para provar as folhas tenras que cresciam juntamente com as urzes. Quando regressavam, ele e os seus amigos, tinham sido insultados com horríveis palavrões pelo caseiro da quinta, pois tinham devastado uma enorme quantidade de folhas tenras da sua sementeira causando-lhe enorme prejuízo. Lembrava-se bem que tiveram de se esconder à pressa debaixo de uns troncos carcomidos, cobertos pelas finas agulhas dos pinheiros, para evitar que o seu riso fosse ouvido pelo homem enfurecido que batia com um pau no chão e levantava as folhas secas na esperança de se vingar. Nesse dia estavam tão hilariantes e felizes que cantaram todo o caminho uma canção improvisada cujo refrão repetiam desordenadamente. "Barriguinha cheia de folhas tenrinhas, mas perseguidos pelo agricultor fuinhas"

Certo dia, a Fada apareceu e ficou bastante enternecida com o ar sisudo e melancólico de Policote.

– Alegra-te, meu amigo, pois trago-te uma proposta irrecusável que animará de certeza a tua vida – disse agitando a cintilante varinha de condão que fazia círculos no ar.

– Ser-te-ei eternamente grato mas não quero que me mostres mais nada. As belezas que pude observar tornam ainda mais dolorosa a minha vida porque sei que há espaços de liberdade por onde se pode viajar sem cessar e eu vivo aqui enclausurado.

– Mas tens amigos – disse a Fada.

 O caracol sorriu com um sorriso muito largo. Havia meses que isso não acontecia. Abanou os dois corninhos dizendo:

– Sim, tenho sorte, muita sorte. Tenho amigos verdadeiros e isso é fantástico.

– Ouve atentamente o que tenho para te dizer. Vais poder concretizar dois desejos, apenas dois. Sê por isso cauteloso na tua escolha. Não te esqueças que a ambição exagerada é o caminho para a perdição. Muitos foram aqueles que não se contentaram com as suas conquistas e por isso perderam o sabor do que conquistaram. Não te esqueças de deixar lugar para o sonho e para a luta. Só assim a vida terá valor.

Policote tornou-se pensativo.

 – Concede-me esta noite – pediu delicadamente. – Preciso tanto de pensar!

– Está bem! Mas, amanhã ao nascer do dia terás de me dar uma resposta sob pena de o prazo expirar. A Rainha das Fadas abriu uma excepção e ela é muito rigorosa e nunca torna atrás nas sábias decisões que toma. Tu não serás excepção!

Policote passou a noite acordado. Fizera uma grande amizade naquele pequeno jardim e jurara que esta seria até à morte. Ele próprio não compreendia porquê mas nunca em momento algum pusera a exígua hipótese de se separar dos amigos.

 – Quero ir para a minha aldeia e encontrar Helicolete e rever os meus velhos amigos – dizia para si alto no silêncio da noite. – Isso é claro. Mas nunca mais poderei ver as três fininhas minhocas nem o meu amigo caracol. Nunca mais lhes poderei contar as minhas aventuras, as minhas mágoas, nunca mais os ouvirei tossir durante as longas noites, queixar-se do sol abrasador ou das chuvas torrenciais. Nunca mais me falarão dos seus amores, das suas aventuras, das suas tristezas. Nunca, nunca mais. É uma perda irreparável que eu não poderei suportar!

E assim passou a longa noite naquele dilema que dilacerava e oprimia o seu dorido coração.

Quando o Sol começou a despontar no horizonte arroxeado e a vida fervilhava à sua volta, Policote julgou ter encontrado uma saída.

Chamou então os amigos que dormiam tranquilamente e contou-lhes a sua conversa com a Fada. No fim disse-lhes:

– Acho que já encontrei uma solução.

– Sim! Qual é? – perguntaram as três minhocas quase em uníssono.

– Quero que a Fada me deixe regressar à minha aldeia.

– Qual é então o segundo pedido? - perguntaram em coro os amigos.

– Pedirei que me conceda o dom de vir ver-vos sempre que tiver saudades vossas.

– E a Helicolete? – perguntou timidamente a minhoca mais pequena que não queria acreditar no que estava a ouvir . – Falavas-nos tanto dela. Era tudo o que tinhas quando chegaste e até nos encontrares. Foi por ela que viveste, que suportaste o silêncio, a solidão, que venceste a morte. Foi dela que nos falaste durante longas horas. Vais abandonar esse sonho? Vais abdicar do que acalentou a tua vida?

– Essa será a razão de viver de que falou a Fada – retorquiu num tom calmo e firme.

– Não sei o que queres dizer disse a minhoca mais pequena temendo não ter percebido o que tinha ouvido.

 – Sim ripostou o caracol – Terei um objectivo e isso será importante na minha vida. Assim todos os dias terei uma razão para me levantar cedo porque terei de a procurar, terei um objectivo quando os não tiver. A vida assim terá ainda mais sentido.

– É ... – disse a minhoca mais robusta tentando dissimular a sua emoção.

– Sim! – acrescentou Papilote – É preciso que cada momento da nossa existência tenha sempre um novo encanto .É preciso saber dar-lhe esse encanto. Se o não fizermos acharemos que tudo é monótono e previsível. É a previsibilidade que mata o sonho. É isso que eu não quero! Todos vocês são parte da minha vida, por isso parte do meu sonho.

Os quatro amigos entreolharam-se com ar espantado. O pequeno caracol disse para si emocionado:

– É recente esta nossa amizade mas é para valer. Senti isso desde o primeiro dia. Só o coração sabe ver estas coisas. Só o coração sabe ver o que não se vê… Eu sabia que era assim pois senti o mesmo quando conheci as minhas amigas minhocas.

No dia seguinte quando a Fada chegou Policote informou-a prontamente das suas intenções. Esta ficou feliz e orgulhosa com a decisão do seu protegido. Dir-se-ia até que a Fada não esperava outra resposta. Apressou-se a dizer:

– Tens aqui esta pequena concha com esta minúscula rolha. No seu interior encontra-se uma poção mágica feita de algas, de água do mar e um pouco de terra. Se beberes uma minúscula gotinha poderás imediatamente concretizar um dos desejos que pediste. Quando precisares de te deslocar, serás prontamente levado pelas asas invisíveis da Rainha das Fadas. Quando vires que a poção se começa a esgotar basta colocar dentro umas gotículas de orvalho e verás que esta se multiplica imediatamente.

Policote escutava atentamente o que a Fada lhe dizia e repetia para si cada uma das palavras, temendo enganar-se.

Percebendo o exagerado embaraço do pequeno caracol rematou:

– Agora tens de te apressar pois terás de partir antes que o sol se torne muito forte e dificulte a tua caminhada.

O pequeno caracol tornou-se repentinamente calado e apreensivo como se toda a esperança lhe tivesse sido abruptamente retirada. Depois, vencendo o duro silêncio disse com uma voz pausada e dorida e com as lágrimas a jorrarem-lhe dos olhos:

 – Mas eu nunca mais te vou poder ver! Tu foste tão importante para mim! Foste tu que me abriste os olhos para o mundo, que me mostraste a fantástica luminosidade do mar, que me acolheste, que me ajudaste e me protegeste! Eu não posso viver sem te voltar a ver. O mundo não terá sentido! As alegrias deixarão de ser tão alegres! Se encontrar Helicolete, será como se nunca a tivesse encontrado!

– Ouve atentamente! – disse a Fada sorrindo para esconder o seu embaraço. – A tua coragem e a tua sensibilidade alteraram as intenções da Rainha das Fadas que sem nunca te ter visto conhece a nobreza da tua alma. Esta decidiu que cada vez que for chamada para te transportar nas suas sedosas e invisíveis asas eu virei com ela. Assim, poderemos conversar e nunca mais saberemos o que é a saudade.

– Nunca....nunca mais saberei o que é a saudade – disse atabalhoadamente para quebrar o silêncio.

O caracol não cabia em si de contente. Era tudo o que queria! Embevecido despediu-se de todos seus amigos com abraços fortes e lágrimas abundantes, dando e recebendo inúmeras recomendações.

– Não sejas lamechas! Até parece que nunca mais nos vais ver! – diziam os amigos rindo para dissimular o seu embaraço.

– É mais forte do que eu. Muito mais forte do que eu! O tempo que estiver longe de vós será para mim uma eternidade.

– Deixa-te de conversas! Despacha-te – disseram um a um todos os animais para o encorajarem.

E embalado nas sedosas asas da sua protectora e iluminados pela luz fosforescente dos pirilampos que apareciam e desapareciam como num jogo de magia, foi então conduzido novamente à sua quinta.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                          VI

 

Tudo lhe parecia agora muito estranho, dir-se-ia até irreconhecível. Tinha perdido gradualmente o hábito de ouvir o silêncio que outrora tanto apreciava. A voz rouca do galo patriarcal logo pela manhã incomodava-o tanto que às vezes, sem querer, desejava vê-lo a fumegar num enorme caldeirão. O cantar estridente dos grilos e das cigarras parecia-lhe agora estranho e até irritante.

Às vezes sem perceber porquê dava consigo a dizer:

– Bichos horrorosos, enfadonhos e incomodativos. Vê-se logo que não têm nada que fazer a não ser cantar todo o Estio uma cantilena desafinada e monocórdica como se isso fosse a única coisa para eles. Precisavam de saber as partidas que às vezes a vida prega quando menos esperamos. Bem, mas talvez até seja melhor assim...Não saber às vezes torna a vida mais fácil.

Apesar da sua enorme coragem, Policote nem sempre conseguia esconder a tristeza que tornava pesado o seu coração. Às vezes ficava mais sério e não sorria com aquele sorriso que mais parecia o desabrochar de uma radiosa flor e que era o seu maior encanto.

 Por vezes sentia até uma estranha saudade do bulício da cidade, do seu torvelinho e do se frenesim constante. O cheiro forte e penetrante da terra lembravam-lhe o rumor do mar, o rolar monótono das ondas sobre as areias.

Passou meses e meses procurando incessantemente a irmã por todos os lados sem desanimar. Perguntava a todos os amigos e conhecidos se a tinham visto mas todos respondiam invariavelmente:

– Não, não a temos visto nem sabemos nada dela!

 Sempre que podia deslocava-se à cidade para ver os seus amigos e contava-lhes com grande mágoa como as suas buscas tinham sido em vão e como a ausência da irmã lhe trazia a alma enegrecida e incompleta. Estes ficavam muito tristes pois não podiam ajudá-lo.

Às vezes na viagem de regresso quando o desalento era avassaladores, as palavras encorajadoras da amistosa Fada reuniam-se às dos seus amigos. Então, durante algum tempo a sua alma sentia-se desanuviada e a coragem fermentava interminavelmente. A busca surgia-lhe então como um desafio engrandecedor da sua existência, uma forma de o fazer sentir que estava vivo.

Era de novo a Primavera. Já não se sentia o vento frio, forte aliado da tempestade, a chuva já não lançava torrentes de lágrimas sobre os telhados, sobre os beirais e sobre as árvores despidas. Agora já nem as nuvens pincelavam o céu de cores cinzentas e sombrias. Os pássaros tinham regressado. Por todo o lado havia magníficos botões que desabrochavam sedosos e perfumados. Algumas flores aguardavam pacientemente o momento certo para ostentarem a sua beleza e outras agradeciam com ar sorridente o pólen trazido pelos insectos. Os animais seduzidos e estimulados pelo calor primaveril faziam a corte para conquistar o coração da sua eleita. As plantas geminavam em volta no seu esplendor. A seiva corria vigorosamente no corpo adormecido das árvores que exalavam perfumes fortes e adocicados e enchiam o ar de abelhas laboriosas e azafamadas. A terra recentemente lavrada abria enormes sulcos semelhantes a intermináveis caminhos para acolher no seu ventre novas sementeiras. O seu cheiro era tão forte e penetrante que inebriava e entontecia Policote.

Num desses dias que Policote adormeceu durante a tarde. Naquele dia, esperançado, aventurara-se para mais longe. Tinha feito uma longa caminhada durante toda a manhã e por isso tinha perdido muita energia.

De repente acordou sobressaltado pois sentiu que alguém tocando no seu corpo adormecido o chamava com uma voz doce e maviosa. Eram os seus amigos da infância que vinham ter com ele pois os grilos tinham-nos informado da sua chegada.

Policote estava radiante. Havia muito tempo que os não via. Acocorado sobre um velho tronco musgoso contou-lhes detalhadamente todas as aventuras. Contou-lhes também como estava desiludido pois não encontrava a sua irmã.

Os dois amigos estavam muito calados e muito atentos até que disseram:

– Mas nós sabemos onde está Helicolete.

Policote não acreditava no que ouvia e perguntou com a voz trémula e o coração exaltado e palpitante.

– Helicolete? Devem estar enganados! Não pode ser! Procurei-a por todo o lado e não a encontrei.

Então estes contaram-lhe como a irmã incansavelmente o procurara durante meses e meses até que perdidas as esperanças se mudou para a quinta ao lado para nunca mais ver os lugares que lhe traziam dolorosas recordações do seu irmão. Contaram-lhe também que eram as borboletas multicolores que lhe traziam diariamente as novidades.

– Todos os dias ao meio-dia encontramo-nos com as nossas amigas borboletas junto do pessegueiro, ao lado do pequeno riacho. – disse efusivamente o mais velho.

 – Ao meio-dia! – Que coincidência! O prazo limite indicado pela Fada para a minha partida foi até ao meio-dia – disse Policote para si.

Então combinaram encontrar-se no dia seguinte debaixo da velha árvore que abrigava a enorme presa que regava a quinta nos dias de calor abrasador quando o sol dardejava os seus lustrosos raios com grande vigor e a terra absorvia sofregamente o liquido rejuvenescedor.

 Policote não conseguiu dormir, tal era a sua enorme agitação. Refez inúmeras vezes, na sua mente cansada e ansiosa, o desenrolar do tão almejado encontro, reformulando cada uma das palavras que lhe ia dizer, pois nenhuma lhe parecia exprimir com exactidão o que pretendia dizer.

Chegou junto da presa ainda o meio-dia estava longe tal era a sua agitação e também porque preferia fazer a caminhada antes do sol se tornar demasiado forte pois sabia que as horas de calor podiam ser fatais.

A tão ansiada hora do encontro começou a avizinhar-se. O pequeno caracol, acompanhado pelos amigos, caminhava lentamente seguindo com dificuldade as rápidas borboletas até ao local indicado, esquecendo por completo o cansaço da caminhada e calor abrasador, quase sufocante.

A alguns metros avistava o voraz milhafre. Sabia que do alto de uma árvore mirava tudo para ver o que lhe seria mais grato ao seu paladar. Policote dizia baixinho:

– Nunca vi nenhum destes animais lá na cidade onde estão os meus amigos. Seria perigoso para a minha amiga minhoca. Nem quero pensar se lhe acontecesse alguma coisa!

Ao longe na calmaria do vasto prado atapetado de margaridas e de trevo, ostentando os seus úberes cheios de leite, as vacas acompanhadas dos seus bezerrinhos abanavam a cauda com ar impaciente para sacudirem os irritantes insectos que se sentiam atraídos pelo cheiro adocicado do seu corpo. Não muito longe uma galinha lançava o seu constante som rouco para não perder o rasto dos seus pintos recém-nascidos. Os pardais debicavam com ar sôfrego o alimento trazido pelas mães. Aqui e além avistavam-se montes de feno e de pasto seco.

 De repente Policote avistou a irmã a uma curta distância.

Gostaria de poder correr na sua direcção Mas, a emoção tornava ainda mais lento o seu caminhar. Ia enfim vê-la! Poderia contar-lhe as suas aventuras, poderia abraçá-la, tocá-la, dizer-lhe o quanto tivera saudades suas, como a vida sem ela era apenas metade da vida.

Mas, quando chegou junto dela as palavras ficaram-lhe suspensas na garganta e era apenas o duro e pesado silêncio que reinava. Ficaram assim durante largos minutos até que Helicolete, superada um pouco a emoção disse:

– És tu! Isto não pode ser! Onde estiveste todo este tempo?

– Procurámos-te por todo o lado e não te encontrámos. Julgámos que estavas morto! Mas eu agora estou contente, tão contente!

– Mas tu falas no plural – disse Policote confuso. – Quem te ajudou a procurar-me?

– Não percebo! Quem haveria de ser? Os nossos pais, claro!

– Não posso acreditar! Mas os meus amigos trouxeram-me a notícia de que eles tinham morrido num Inverno muito rigoroso – disse Policote gaguejando.

– E tu continuas o mesmo tonto dando valor às suposições – disse a irmã com ar que pretendia sapiente.

Helicolete reparou que o irmão começava a ficar branco e que todo o seu corpo tremia como se fosse sacudido por uma forte tempestade. Temeu que este desmaiasse. Para aliviar a grande emoção disse com ar aparentemente descontraído:

– Deixa-te de conversas! Não sejas sentimental e piegas! Vem daí! Vamos ter com eles. Estão sentados naquela rocha debaixo do velho carvalho pois estão muito cansados. Sabes que já não são muito jovens! Tens que te apressar não vá cair-lhes em cima da concha uma bolota. Já imaginaste a catástrofe que seria?

Policote riu com a piada da irmã. Estava feliz. Queria tanto ter ali os seus amigos para que estes pudessem compartilhar a sua alegria. O seu maior desejo era que a Fada os trouxesse ali, num instante, nas suas asas de tule transparente para que pudessem compartilhar este momento tão ansiado.

Apetecia-lhe gritar a plenos pulmões que a vida lhe trazia dádivas impensáveis quando menos esperava.

Era tão bom dar aos tons cinzentos da vida um tom de rosa purpúreo!

Agora até o verde dos campos lhe parecia mais verde e o canto dos pássaros mais timbrado, mais claro.

Dando enormes saltos de alegria e com um sorriso de orelha a orelha dirigiu-se rapidamente para o local que a irmã lhe indicava.

O velho e sapiente sapo que tinha fama de ser muito desordeiro mas que chorava sempre que alguma coisa o emocionava, limpou as grossas lágrimas a uma folha de oliveira que se encontrava no chão e declarou abanando a cabeça com ar satisfeito:

– É tudo tão bonito!

 As rãs, sentadas em cima dos magníficos dentes-de -leão batiam palmas, os louva-a-deus erguiam a sua pequena cabeça triangular e tocavam castanholas com as suas enormes patas anteriores e os sapos arqueando as suas pernas dançavam desajeitados uma valsa antiquíssima.                                       

Enquanto na velha igreja da aldeia os sinos lançavam no ar tépido as suas sonoras badaladas, os ouriços faziam uma bola e rolavam rapidamente levando a novidade a todos os animais da quinta.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

2 comentários:

Anónimo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

Esta história está errada pois corresponde à do peixe que contava histórias de amor, ou seja a história está repetida e fica sem se conhecer a do policote um pequeno grande caracol.
espero que a informação seja útil mas de qualquer modo avisarei directamente a professora.