quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Novela infanto-juvenil "O peixe que contava histórias de amor"

 

I

 

Era uma vez uma casa de campo que se situava no topo de uma ampla montanha. As suas largas janelas e varandas debruçavam-se sobre o rio que serpenteava por entre o casario e vinhedos. Corria suave entre cascatas sonoras e cantantes. Nele deslizavam peixes de escamas prateadas e brilhantes que se escondiam velozmente debaixo dos seixos redondos e polidos sempre que se sentiam ameaçados.

Sobre o rio e aproveitando a queda das águas havia um pequeno moinho. As suas enormes mós moíam incansavelmente os cereais de noite e de dia.

Depois a dona da quinta recolhia a farinha num saco e dava-a aos animais e guardava a restante para fabricar enormes broas de pão que cozia no forno de barro debaixo do largo alpendre.

À volta da casa havia grandes árvores que se enchiam de frutos perfumados e deliciosos durante quase todo o ano. Primeiro vinham as laranjas, as tangerinas, as nêsperas e depois as cerejas, as maçãs, as pêras e os pêssegos e no Outono as uvas, os marmelos, as castanhas e os figos.

Era aí que morava a pequena Joana.

Joana gostava de correr ao longo da larga entrada na qual havia duas enormes tílias que estendiam os seus ramos sobre a vasta entrada e que pareciam acolher com ar caloroso todos os que ali entravam. Gostava também de se esconder atrás das árvores quando brincava com os filhos dos caseiros ou com os primos que vinham da cidade ou então de correr até ao rio. Mergulhava na água gelada e deixar-se adormecer sobre os seixos brancos e rosados a ouvir o vento tocar de leve os arbustos que gemiam molemente.

Às vezes encostada às árvores que ladeavam o rio, via passar um peixe com ar muito apressado e mal-encarado. Tentava apanhá-lo para o levar à mãe, mas este aflito escorregava velozmente entre as suas mãos frágeis. Regressava por isso a casa sempre com as mãos vazias.

Joana gostava também de trepar às árvores para poder observar os ninhos, os ovos e também os pássaros recém-nascidos. Colocava-os com cuidado entre as suas mãos e podia sentir o calor do seu corpo, a humidade das suas penas e ouvir também o bater vigoroso do seu coração frágil e assustado.

Às vezes calçava as botas de borracha de um dos seus criados e colocava-se em cima dos carros de bois que chiavam carregados de mato para adubarem as sementeiras ou então de grossos troncos de madeira que ardiam no Inverno na grande lareira de mármore da sala.

Adorava ver as juntas de bois caminhar a passo cadenciado, unido pelo grande jugo maravilhosamente talhado.

Os animais abanavam com impaciência as suas compridas caudas para sacudirem os inoportunos insectos que pacatamente lhes tentavam picar o duro couro.

Às vezes, estendida sobre a erva, tentava compreender como é que os dois animais caminhavam horas e horas lado a lado sem se enganarem ou sem se disputarem de forma selvagem e brutal.

Dizia então para si:

– É fantástica a harmonia e a delicadeza que existe no seu caminhar. Imagino como seria se soubessem falar!

Joana raramente saía.

Apenas de vez em quando ia com a mãe ou com as criadas à feira. Só aos Domingos de manhã é que ia sempre à missa acompanhada pelos criados, pelos seus pais e por vezes também com os caseiros e os seus filhos.

Nesse dia usava os vestidos mais bonitos e calçava os melhores sapatos, quase sempre os de verniz preto. A velha criada rematava as suas belas tranças douradas com dois enormes laços de seda que condiziam sempre com a roupa. Adorava olhar-se longamente no espelho oval que se encontrava sobre a cómoda ao fundo do quarto.

Como de costume, antes de saírem de casa, a mãe lembrava-lhe a postura que devia ter. Joana ouvia-a atentamente. Mas na verdade do que mais gostava era de se sentir bonita e de encontrar as caras do costume que a mãe cumprimentava sempre com um ar afável e com quem conversava às vezes durante algum tempo.

Por isso o Domingo era sempre um dia de festa, um dia diferente, ansiosamente esperado.

Mas estas saídas ocasionais não a preenchiam. Gostava de sair mais vezes, conhecer pessoas diferentes e lugares diferentes. Queria ver com os seus olhos os olhos do mundo e de se sentir deslumbrada face a todas as coisas novas e imprevistas.

Sentia-se por isso um pouco sozinha. Às vezes conversava com os criados mas estes tinham sempre um ar tão distante e atarefado! Conversavam com um ar sério sobre as sementeiras, sobre as colheitas, sobre os animais, fazendo sempre contas aos lucros e aos prejuízos, indiferentes ao que ela lhes contava.

Joana admirada dizia para si:

– Que esquisitos que são todos! Como é possível que falem da venda dos animais, do crescimento das plantas, do êxito das suas plantações, do tempo favorável às culturas, com o mesmo entusiasmo e a mesma emoção com que falam dos casamentos e dos baptizados!

Por vezes perguntava a si própria se estes não tinham sido crianças. Às vezes tinha a sensação que para eles o tempo se tinha condensado e os tinha tornado repentinamente adultos responsáveis, completamente afastados da sua meninice. Joana estremecia só de pensar que um dia, abandonada a meninice, ela também pudesse ser como eles.

Por isso às vezes preferia estar sozinha.

Metia o lanche no cesto de verga que a mãe lhe comprara na feira e percorria a quinta.

Saía logo a seguir ao almoço. Só voltava a casa quando o sol, escondendo-se por detrás da alta montanha, recolhia os seus raios lustrosos e arroxeava o longínquo horizonte num efémero e irrepetível matizado e os gados cansados recolhiam a passo lento das pastagens.

E cada momento da vida era sempre diferente, único, maravilhoso.

Gostava muito de conversar com os animais, com as flores e de ouvir pulsar o coração das plantas e de observar a inumerável variedade da natureza.

Às vezes caminhava por entre os campos de trigo que pareciam murmurar incansavelmente e ondulavam à mais leve brisa e pela extensa pradaria coberta de boninas, de margaridas, de trevos, de girassóis e de papoilas. Outras vezes caminhava descalça sobre a terra lavrada de fresco e enterrava os seus pés nos grandes sulcos que se lhe afiguravam intermináveis caminhos. Caminhava também ao longo do largo pomar sentindo a frescura da erva, o perfume das flores e dos frutos maduros. Colhia a fruta mais perfumada e comia-a estendida sobre a relva, embalada pelo ciciar dos ramos das árvores e pelo canto delicado dos pássaros.

Mas quando o Inverno chegava a alegria de Joana desaparecia. Tinha que ficar em casa a olhar o céu incandescido pelos relâmpagos, as árvores nuas e desalinhadas da grande alameda e a ouvir o vento enraivecido fustigar implacavelmente a enorme casa noite e dia.

Por vezes Joana inventava jogos divertidos e invulgares dos quais era simultaneamente a heroína e a vencedora a vilã e a altruísta, a escrava e a senhora, a menina e a mulher.

Nos dias menos chuvosos e menos frios subia a estreita escadinha de caracol que dava para o amplo sótão. Abria alguns caixotes para ver o que havia lá dentro. Para seu grande espanto encontrava sempre coisas das quais já não se lembrava: o seu primeiro vestido, os seus livrinhos, as velhas bonecas, o seu berço, as esquecidas fotografias de família.

Às vezes abria com cuidado os velhos álbuns de família que o tempo tinha amarelecido e inventava histórias para todas aquelas pessoas que não conhecia, mas que sem saber porquê a fascinavam muito. Ao fim do dia cada uma delas ganhava vida e participava em aventuras fantásticas e inimagináveis. E assim, todos aqueles desconhecidos que se perdiam no esquecimento tornavam-se a pouco e pouco participantes das suas inúmeras aventuras. Era como se por alguns momentos fossem de novo devolvidos à vida.

Mas a estação do ano de que mais gostava era do Verão.

As nuvens já não pincelavam o céu de cores cinzentas e sombrias Podia correr descalça sobre a terra, sentir a verdura florida dos campos, sentir o tamanho dos dias. E ainda por cima os filhos dos caseiros já não saíam cedo para a escola. Era nessa altura que os seus três primos vinham da cidade e davam vida à casa enchendo-a de gritos hilariantes e estridentes.

Havia um entrar e sair, uma correria constante que fazia chiar as tábuas do soalho o que irritava as criadas habituadas o ano inteiro à rotina e ao sossego.

Joana gostava de correr com eles pela quinta e de ir até ao rio para mergulhar nas águas frescas e transparentes. Gostava também de se estender sobre a erva ou sobre os seixos e sentir sobre a sua pele tostada o calor do sol. Mas às vezes tinha que ficar na sombra porque os seus primos não podiam fazê-lo pois a sua pele leitosa não estava habituada ao sol. Usavam sempre enormes chapéus muito enterrados na cabeça o que lhes dava um ar de crianças inadaptadas. Às vezes Joana tinha que fazer um enorme esforço para não rir, pois aqueles três primos faziam-lhe lembrar os espantalhos que a mãe mandava colocar nos campos para guardar as sementeiras ou então os frutos que começavam a amadurecer.

Às vezes, sem qualquer perigo, subia ao topo das árvores pelas quais trepavam as ágeis videiras para colher os cachos já maduros. Os primos encolhendo os ombros cheios de medo e sem nada compreender, olhavam-na com um ar aterrorizado e incitavam-na constantemente a descer. Joana, tomando um ar de trapezista, ria perdidamente arregalando os olhos e fazendo caretas muito expressivas mas irritantes.

Lamentava que aquelas crianças tão robustas e saudáveis se mostrassem tão enfezadinhas e medricas. Apesar de gostar muito deles achava que os seus três primos, que todos consideravam muito civilizados por viverem na cidade, eram afinal muito atados e molengões. Eram incapazes de enfrentar as fantásticas adversidades da vida, o maravilhoso e o imprevisto. Às vezes sentia vontade de os beliscar, de os abanar para os tirar daquela apatia que tanto a irritava.

Por vezes pareciam-lhe ter um ar tristonho e apagado. Eram extremamente pálidos, cobertos de sardas e o seu riso parecia menos franco e menos aberto do que o dos filhos dos criados e dos caseiros.

Por isso Joana não perdia uma única oportunidade para os provocar, para os pôr à prova e para lhes pregar diversas partidas.

Gostava de os ver olhar para as coisas com um ar muito enojado como se a aldeia fosse um submundo.

Por isso, ao Domingo de manhã, ia propositadamente brincar com eles para debaixo do amplo alpendre por onde trepavam as perfumadas glicínias, as buganvílias e as avencas e o funcho e as begónias estavam suspensas em vasos nas paredes.

Era aí que Matilde, atarefada, assava o cabrito e o frango e também o arroz e as batatas.

A criada tapava o forno de lenha com a pesada porta de ferro e para evitar a fuga do calor colocava à volta da porta bosta de boi amassada com cinza que, depois de seca à força pelo calor do forno, parecia uma pasta inquebrável de cimento verde.

Os primos acabrunhados, abeiravam-se então da velha criada e, com ar enojado, encolhiam o nariz e desviavam o olhar.

Por isso, quando a deliciosa comida chegava à mesa, Joana não se esquecia de lhes lembrar os detalhes da cozedura, levando assim os pobres a perder o apetite. E olhando-os com ar de desafio deliciava-se com a comida que fumegava sobre a larga mesa e que cheirava ainda a hortelã e a alecrim.

Dizia então para si:

– Acham-me uma aldeã que pouco ou nada sabe da cidade. Mas eles vivem na cidade e não conhecem a cidade. Da aldeia também não sabem quase nada. Quando vêm cá têm que aprender a viver nela. E mal começaram a aprender já têm que se ir embora. Eu sou mais feliz porque, pelo menos, conheço o mundo em que vivo…

Mas como acontece com todas as coisas boas as férias passavam sempre depressa.

E quando os primos partiam no início de Setembro voltavam também os dias vazios e sombrios, as horas despidas compridas e monótonas.

Nesses momentos Joana gostava de poder parar o tempo para que o Outono e o Inverno nunca chegassem.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

II

 

Mas um dia, quando menos esperava, aconteceu algo de inesperado e fantástico.

Era no início do Verão. Dirigiu-se como de costume em direcção ao pequeno rio que corria serpenteando junto da sua casa para nele tomar o seu primeiro banho do ano. As águas tinham agora um brilho de diamante. Não havia qualquer perigo de mergulhar sozinha pois dois dos criados estavam perto. Regavam as culturas aproveitando água que diminuía gradualmente com a chegada do calor.

Antes de mergulhar estendeu-se ao comprido sobre os seixos para sentir sobre a sua pele o sol primaveril e estendeu a palma das suas mãos sobre os arbustos mornos. Durante alguns minutos fechou os olhos deliciada com tudo o que a rodeava.

Sobre os juncos que ladeavam o rio havia um enorme fervilhar de insectos. Nos ramos das árvores robustecidos por anos e anos de sol, os pássaros entoavam uma cantilena estridente e sonora. Os lagartos espalmados estendiam-se sobre as rochas aproveitando o calor do sol. Abanavam a sua cauda com um ar inquieto e despreocupado. As efémeras borboletas, ostentando as suas delicadas asas onde pareciam desenhados olhos assustadores, desenrolavam agilmente a comprida tromba e sugavam com ar apressado o néctar do fundo das flores. Os pulgões e as cigarras cravavam o rostro pontiagudo nos rebentos das plantas.

De repente ouviu um pequeno barulho que parecia o Ré de uma flauta.

Joana olhou à sua volta completamente surpreendida e sem nada compreender. Ninguém na quinta sabia tocar flauta nem qualquer outro instrumento, disso tinha a certeza.

– Quem será? – disse para si  colocando a mão sobre a boca para disfarçar o seu profundo espanto. – Não pode ser uma pessoa estranha. Ninguém se atreveria a entrar. A quinta está vedada por altos muros e também por altas sebes e o rio não é navegável.

Levantou-se e pôs-se a olhar atentamente à sua volta dizendo em voz baixa:

– De onde virá este som tão belo, tão suave? Nunca ouvi um som assim…

E, caminhando vagarosamente dirigiu-se sem pensar em direcção ao velho moinho de pedra que se encontrava apenas a alguns metros dali, esperançada em ouvir de novo aquele som.

O seu coração batia vigorosamente. Os seus pés pareciam levados pela brisa. Por vezes sustinha a respiração como se temesse que esta pudesse quebrar aquele profundo e estranho encantamento.

Espreitou por uma das frinchas da parede.

Lá dentro reinava um silêncio absoluto, quase sufocante. As duas portas ressequidas pelo tempo estavam fechadas com o grande trinco como se guardassem o mais faiscante de todos os tesouros. As pequenas janelas estavam trancadas com os seus dois ferros em forma de cruz. As mós continuavam incansavelmente a moer os cereais com o seu som rouco e monótono.

De repente Joana suspendeu o seu respirar ofegante durante alguns momentos e ficou muito quieta e de olhos esbugalhados.

– Não posso acreditar no que estou a ver! Meu Deus, devo estar a sonhar…

Junto da represa, a alguns metros de si, um peixe muito vermelho e de olhos muito vivos, curiosos e redondos dançava rente às águas uma valsa antiquíssima como se fosse embalado pelo som de uma misteriosa orquestra. Dançava sozinho numa harmonia nunca vista.

Já não se ouvia mais o som da flauta. Ouvia-se apenas o barulho cantante e monótono das águas e o canto monocórdico das cigarras que, como numa orquestra desafinada, estendiam o som do seu canto pelos vastos campos e leiras da quinta.

Joana incrédula continuava estática, deslumbrada e assustada.

Sem saber o que fazer estendeu-se debaixo dos choupos que cobriam delicadamente o rio com os seus ramos e esperou durante algum tempo para ver o que sucedia.

De repente o peixe parou de dançar e inclinou-se com delicadeza como se estivesse a fazer uma mesura. Depois fazendo um pequeno círculo no ar retirou uma pequena pérola de debaixo de uma barbatana e com ela limpou uma lágrima que corria vagarosamente dos seus olhos.

Repentinamente recomeçou a sua dança. Mas desta vez os gestos pareciam tristes e sem expressão e o seu olhar agora também inexpressivo parecia perder-se no horizonte longínquo.

Então o peixe parou novamente de dançar e, inclinando-se um pouco, colocou na estreita margem do rio uma pequena pérola branca que rebrilhava intensamente sobre a luz fantástica da vasta tarde.

Joana mais uma vez não se mexeu. Era tudo tão estranho, tão diferente! Sentia-se muito confusa. E, repentinamente todas as histórias que ouvira contar e que povoavam o seu imaginário vinham-lhe agora à memória. Lembrou-se de imediato da história que a mãe lhe contara sobre o célebre peixe bíblico que aparecera a Tobias no rio Tigre para o devorar quando este desceu ao rio para lavar os seus pés empoeirados. Pensou que tudo o que lhe estava a acontecer podia ser uma cilada e que aquele peixe podia afinal não ser o peixe inofensivo que aparentava ser.

Descalçou as sandálias. Cheia de medo e sem olhar para trás fugiu a correr para casa.

Nesse dia, para espanto dos pais, que por momentos a julgaram doente, meteu-se na cama mais cedo do que era habitual.

Apesar de fazer um enorme esforço não conseguia adormecer. E essa noite pareceu-lhe assim a mais longa de toda a sua vida. Perdeu a conta às inúmeras vezes que ouviu ao longe o toque do Ave-Maria no antiquíssimo relógio da sala de jantar.

 Por mais que tentasse esquecer o sucedido, na sua mente atribulada via com nitidez o olhar forte e penetrante do peixe, o seu ar doloroso, infeliz, mesmo supliciante.

– Há nele uma expressão muito dorida e verdadeira… Não, o peixe que eu vi não pode ser um peixe perigoso. Eu vi-o, eu senti-o! Não há engano naquilo que o coração vê! Só o coração pode ver o que não se vê… – dizia para si.

Mas por mais que sentisse que a sua intuição estava certa, era sempre a imagem do peixe bíblico que lhe vinha constantemente à memória e enevoava momentaneamente a sua lucidez.

– Mas o peixe que apareceu a Tobias não foi só um peixe mau. Diz-se que o fígado e o coração deste peixe ao serem colocados sobre as brasas afugentaram os demónios de casa de Sara. Lembro-me muito bem de ter ouvido a mãe contar que os demónios tinham muitos ciúmes de Sara e por isso no dia do seu casamento lhes tinha matado os sete maridos que lhes tinham sido prometidos.

E após alguns segundos de profunda reflexão acrescentou com ar maduro e convicto, tentando acalmar-se.

– Nada na vida é totalmente bom ou totalmente mau. E eu tenho que acreditar que o peixe que eu vi não é um peixe perigoso porque é isso que o meu coração diz. Mesmo este peixe bíblico perdeu o seu lado mau. Afinal o peixe que preparava a sua morte tornou-se parte da vida do seu pai. Foi o fel do peixe que o queria matar que o curou da cegueira permitindo-lhe assim ver de novo as cores do mundo e as suas variadas formas.

Depois pondo-se em bicos de pés foi abrir a ampla janela do seu quarto para observar a paisagem e tentar desta forma desviar o pensamento dos acontecimentos que se tinham passado nesse dia.

Alguns mochos, aproveitando a escuridão iam e vinham silenciosamente sobre a pradaria para tentarem desta forma apanhar os ratos desprevenidos. À sua frente abria-se uma extensão de verde magnífico e transbordante que a noite maternal aconchegava no seu seio delicado. Ao longe ouvia-se o murmurar dos milheirais que começavam agora a ficar embandeirados. Podia ouvir-se com alguma nitidez o marulhar ciciante das águas do rio que caíam da represa junto ao moinho.

E estranhamente aquela paisagem primaveril que tantas vezes observara deslumbrada, agora parecia-lhe verdadeiramente nocturna, sem qualquer encanto.

Por mais que se esforçasse não conseguia desviar o seu pensamento do que sucedera naquela tarde.

Embora não o reconhecesse, aquele mistério tomava proporções de algo irresistível, indecifrável e por isso grato à sua imaginação tão abafada pelo espaço da grande quinta. Imaginava o peixe cintilante valsando noite e dia à sua espera. Talvez já tivesse recolhido a pérola e continuasse a limpar os seus olhos húmidos ou talvez já tivesse adormecido vencido pela enorme mágoa e pela enorme dor.

– De certeza que o peixe tinha alguma coisa importante para me contar! Talvez a sua dança fosse um código, uma forma de me transmitir uma mensagem. Eu não o quis ouvir – dizia para si no silêncio da noite milenar.

Concentrava a sua atenção para o que se passava à sua volta mas o que sobressaía da vasta paisagem era o cantar estridente e eufórico dos grilos, o coaxar soluçante das rãs nas margens do rio e o som rouco de uma coruja.

Certamente apenas cortava laboriosamente a escuridão. Mas naquele dia o seu pio pareceu-lhe estranho, agoirento, mesmo irritante.

Lembrou-se então de que a velha criada ficava estarrecida cada vez que ouvia o seu canto sinistro. Matilde afirmava que estas anunciavam grandes desgraças e às vezes até a morte.

Joana sacudiu os ombros e declarou:

– Crendices! O que é que as crendices têm a ver com o meu peixe?

De repente fechou a janela pois ouvia passos pesados que se arrastavam ao longo do largo corredor.

Era Matilde que antes de dormir fazia a habitual ronda da casa. Espreitava atrás das portas, dentro dos enormes guarda-fatos e debaixo das camas pois queria certificar-se de que dentro da casa não se escondia nenhum ladrão pronto a atacar no silêncio da noite.

Joana meteu-se rapidamente na cama, simulando dormir pois temia que a criada lhe fizesse alguma pergunta à qual não pudesse responder. Apesar de gostar de Matilde sempre a achara bastante coscuvilheira e pronta a recontar à sua maneira qualquer história que presenciasse ou ouvisse contar. Bem via como ao Domingo, quando vinham da missa, esta tecia comentários inoportunos sobre a mulher do caseiro ou mesmo sobre a sua comadre.

Joana ria perdidamente pois Matilde, que queria saber tudo com pormenor, fingia nunca saber de nada. Por isso arregalava os grandes olhos azuis como se ficasse muito espantada repetindo com frequência”É verdade?” “Ah, eu não sabia de nada”.

Joana lembrando as palavras da mãe disse para si com ar impaciente:

– Já é tão tarde! Não sei porque é que anda a fazer isto! Ladrões dentro de casa! A mãe tem razão! Matilde é mesmo muito, muito enguiçada!

Depois, os seus olhos foram-se tornando cada vez mais pequeninos. Vencida pelo cansaço acabou por adormecer. Mas o seu sono foi agitado, pouco profundo, e povoado de sonhos estranhos e confusos.

Acordou muito cedo. A manhã sonolenta dormia ainda o seu sono repousante e o sol ainda não tinha mostrado o seu rosto sereno e enérgico.

Deixou-se por isso ficar na cama pois não era habitual levantar-se tão cedo e não encontrava nenhuma explicação que pudesse justificar uma mudança de atitude. Reconhecia ser necessário ter prudência, ser discreta. Qualquer percalço poderia tornar-se fatal!

Mas a imagem do peixe vinha-lhe de novo à memória. Imaginava-o soluçando ofegante, pedindo auxílio. E o que fazia ela? Nada. Estava estendida na sua cama vendo o sol nascer e ouvindo o chilrear hilariante dos pássaros nas árvores do jardim e aspirando a plenos pulmões o ar fresco e saudável da manhã e o perfume fresco das roseiras e das hortênsias que cresciam desordenadas rente à sua varanda.

Quando os primeiros raios de sol entravam pelas frinchas da janela, e estimulavam os seus olhos habituados à escuridão da noite, levantou-se.

Abriu com alguma dificuldade as enormes portadas do seu quarto que gemiam dolorosamente girando sobre as dobradiças enferrujadas.

À volta da casa havia já uma enorme azáfama. Joana viu passar o casal de caseiros, que comendo um grande naco de pão molhado em aguardente, saía de manhãzinha para ir buscar um carro de mato de forma a proporcionar aos animais algum conforto e também para poderem ter estrume necessário para as culturas. António, que já distribuíra baldes de água com farinha a todos os animais, cortava a erva na enorme foucinha que estava presa na parede na divisão contígua à dos animais. Joana ouvia também com nitidez os passos do velho criado, que fazendo tilintar as polidas vasilhas de alumínio, se dirigia apressado em direcção ao enorme estábulo que se situava no lado oposto à casa. Aproveitava a frescura da manhã para ordenhar as vacas e evitar assim que o leite coalhasse com o excesso de calor, servindo assim apenas para ser dado aos animais.

Supôs por isso que dentro em pouco o pequeno-almoço estaria pronto.

Passado algum tempo ouviu o tilintar da loiça. Era a criada que atarefada dispunha os bules e as chávenas sobre a alvíssima toalha de linho na grande mesa oval da cozinha.

Desceu então a ampla escadaria de mármore e entrou no largo compartimento, olhando sempre para o chão. Temia que lessem no seu olhar a inquietude da sua alma, que se apercebessem do seu tumulto interior.

Sentou-se na cabeceira da mesa de costas para o enorme fogão de lenha onde crepitavam enormes achas e sobre o qual fumegavam o café e o leite.

Em poucos minutos tinha tomado o pequeno-almoço.

Quando se preparava para sair da cozinha, concentrando o seu olhar no avental branco de Matilde, perguntou à velha criada:

– Que farias, Matilde, se alguém te pedisse ajuda sem te dizer nada?

Perturbada com a pergunta, limpou desajeitadas as mãos ao avental, olhou Joana nos olhos e, sem perceber nada do que esta lhe tinha perguntado declarou prontamente:

– A menina ultimamente anda com ideias muito, mesmo muito esquisitas. Devia ouvir o que lhe digo…Tem que tomar mais juízo! Ajudar... Ajudar... Ora essa… – disse com ar resmungão. – Isso faz-se aos amigos e não é a qualquer um. A menina sabe muito bem que é assim…

Joana estremeceu. Não esperava aquela resposta. Sempre achara a velha criada sensível, bastante humana e preocupada com os outros. Lembrava-se bem de a ter visto guardar pedaços de pão debaixo do avental para depois os distribuir às escondidas pelos filhos dos caseiros que, de barriga vazia, os comiam deliciados. Não percebia porque lhe tinha dado aquela resposta.

Desiludida disse para si:

– Será que pressentiu o que se está a passar ou apenas pretendia despachar-me pois estava atarefada? Não percebo, Matilde nem sempre faz aquilo que diz. Gosto muito dela mas às vezes é tão estranha! E às vezes até é um pouco bruta! Aliás é igual a todos os outros. Os adultos são tão esquisitos e imprevisíveis. Eu fico sempre sem perceber nada do que fazem ou dizem!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

III

 

Nesse dia Joana saiu como de costume para passear pela quinta. E, a pouco e pouco, sem dar conta, dirigiu-se sem medo em direcção ao rio. Mas, quando lá chegou sentiu-se muito decepcionada. Não havia sinais do peixe e a pérola já não se encontrava no local onde fora colocada no dia anterior.

Com grande tristeza espreitou demoradamente o leito lustroso do rio. Aproveitando a inclinação, as águas fugiam velozes por entre as robustas raízes dos amieiros. Viu apenas areia grossa, seixos redondos e polidos encastrados nos arbustos e nas ervas e os enormes choupos que se vergavam sobre o rio com o seu ar mole e cansado. De quando em quando via passar pequenos peixes ou então grandes cardumes mas nenhum deles era o que procurava.

Um enorme vazio e uma enorme mágoa invadiram a sua alma. Agora que encontrava um encanto para a sua vida este desaparecia agilmente como num passe de magia.

Enquanto observava as águas límpidas e transparentes viu a sua imagem reflectida nas águas. Mas não era mais a que costumava ver quando se mirava no grande espelho oval que se encontrava por cima da cómoda do seu quarto. Parecia-lhe mais escura, o seu sorriso menos franco menos aberto e menos expressivo.

E com os olhos cheios de lágrimas, Joana abandonou o local dizendo:

– A culpa foi toda minha …Sim a culpa foi mesmo toda minha…Que horror! Devia ter sido mais corajosa. Não me devia deixar influenciar por velhas histórias bíblicas que nada têm a ver com o que se está a passar!

Caminhou durante algum tempo completamente absorta. Sentia-se muito cansada.

Estendeu-se ao comprido sobre o centeio derrubando os caules com o peso do seu corpo. Depois, escolheu a parte de cima de um pé de centeio bem grosso. Dividiu-o em dois e fez uma pequena gaita que quebrava o silêncio da clara tarde. Mas o seu som grave e quase monocórdico trazia-lhe de novo à memória o som da flauta e o peixe vermelho valsando sobre as águas do rio com o seu ar expressivo mas que revelava uma profunda mágoa.

Amargurada disse então para si:

– Tudo me faz lembrar o meu peixe: o brilho do sol, o barulho do rio e até o silêncio da noite…E o pior é que eu não sei porque é que tudo isto aconteceu…

Então inexplicavelmente pôs-se a inventar inúmeras histórias e a criar possíveis explicações para todos os acontecimentos. E sem se dar conta esqueceu por completo o mundo que a rodeava. E essa fantasia desmedida era bela porque trazia consigo o sabor da infância e das coisas por tocar.

De repente deu um salto e levantou-se. Ao seu lado os louva- a deus acasalavam. E sem ter concluído o acto procriador, o macho servia de refeição à sua esposa que o devorava com ar imperturbável e inalterável. Depois mantendo-se quase na vertical, a fêmea olhou Joana com tanta insistência que tinha um ar insolente.

– É tudo tão esquisito! Não percebo o que está a acontecer – disse para si – Vivi sempre no campo e fiquei impressionada com uma cena amorosa entre dois animais!

E após alguns segundos de reflexão acrescentou:

– É tão grande a crueldade da natureza! Não há animal que não coma outro. Será que o Homem é mesmo diferente?

E durante semanas e semanas não voltou mais ao rio. Não sabia como mas tinha a certeza de que o seu peixe não estava lá. Por isso o melhor era não ir ao rio para não ter que ver com os seus olhos aquela tão dura realidade. Sem a sua presença este perdia definitivamente qualquer encanto.

O Verão chegava enfim na sua plenitude! Os primos voltaram como habitualmente! Recomeçaram, como de costume, as longas sestas passadas à sombra das ramadas, os lanches à sombra das frondosas tílias ou dos carvalhos, as correrias pela quinta, os jogos habituais e também os banhos regulares no rio.

Certa tarde quando se estendiam sobre o areal grosso para que o sol secasse os seus corpos encharcados, Joana viu no rebordo do rio por baixo dos juncos a pequena pérola que por momentos lhe pareceu uma pequena concha branca. Uma enorme e estranha alegria invadiu a sua alma. Sentia-se no entanto muito amargurada. Não a podia recolher e muito menos escondê-la. Se os primos a vissem podiam atirá-la à água como faziam frequentemente com os seixos. Sabia bem que um dos seus divertimentos predilectos era lançá-los com violência para ouvir o barulho rouco que quebrava o brilho baço das águas. Adoravam ver os pequenos redemoinhos e os grandes círculos que estes faziam no local onde eram projectados.

E para sua grande mágoa a pequena pérola exposta e desprotegida continuou dias e dias no mesmo local.

Quando a noite vinha e as trevas envolviam a quinta com o seu véu de escuridão, Joana sentia uma enorme vontade de aproveitar o silêncio para correr às escondidas por entre a lisa pradaria e dirigir-se ao rio, para poder sentir nas suas mãos pequenas, a lisura e a brancura da pequena pérola. Sabia, no entanto, que não podia fazê-lo. Os primos eram demasiado curiosos. Dariam de certeza conta de que tinha saído. Quando as férias chegavam a mãe mandava colocar as quatro camas no grande quarto ao fundo do corredor para que os quatro pudessem conversar até mais tarde sem serem ouvidos. E depois tinha ainda que percorrer o longo corredor para chegar à porta da entrada. Que diria se alguém a visse? Como explicaria a sua saída a uma hora tão tardia? Que história ia inventar?

Todos iriam perceber de imediato que estava a mentir. Iriam de certeza exigir que lhes contasse toda a verdade. Joana não sabia mentir. Nas raras vezes em que o fazia, o seu rosto tornava-se tão vermelho e tão quente que tinha a sensação de que ia a pouco e pouco estalar.

E pela primeira vez Joana esqueceu os dias frios, vazios e soturnos e desejou que as férias chegassem ao fim, que o tempo, esse ser teimoso e inalterável, passasse rápido para que os primos finalmente partissem.

Apesar de gostar muito deles não podia fazê-los compartilhar este segredo tão importante que agora preenchia totalmente a sua alma. Eram demasiado sérios e sensatos para compreender as incoerências da vida. Joana achava que ela própria, antes de todos estes novos acontecimentos também era um pouco assim! Que lhes ia dizer? Que vira um peixe cintilante suspenso nas águas do rio e que a partir desse dia sem que nenhum dos dois tivesse dito nada, se estabelecera entre eles um pacto indestrutível e que o seu peixe era mais do que um peixe?

Conhecia-os bem. Iriam rir sem parar, colocar perguntas sem nexo, imaginar que estava louca.

Era bem provável que nem sequer guardassem segredo. Talvez até inventassem anedotas que envolvessem a história do seu peixe. Bem via como à noite, estendidos na cama, riam perdidamente enquanto punham a nu as fragilidades dos seus amigos. Joana sem nunca os ter visto conhecia-os a todos como se os conhecesse desde sempre.

Não, tinha decidido. Era tudo demasiado encantador! Guardaria para si o grande mistério daquele encontro. Havia de o decifrar, de encontrar um atalho no íngreme caminho. Iria fazer tudo para não vacilar na procura do entendimento de todas aqueles estranhos mas maravilhosos acontecimentos que só ela conhecia e que agora tanto encantavam os seus dias.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

IV

 

Assim, quando as uvas pendiam das latadas e os cachos se enchiam de abelhas atarefadas e laboriosas e os primeiros figos caíam melados das árvores, os primos partiram.

Pela primeira vez sentiu um enorme alívio. Finalmente poderia correr para o rio para ver se a sua pérola ainda se encontrava lá. E esse estar só consigo, trazia-lhe pela primeira vez um enorme sentimento de liberdade. Pela primeira vez compreendeu que esta era provavelmente o maior privilégio da vida.

Mas, para sua grande mágoa não pode fazê-lo nesse dia pois teve de ir com Matilde à feira para comprar cestos de verga para recolher as uvas. As vindimas começariam no Sábado seguinte.

Tinham que aproveitar o bom tempo. Todos sabiam que as primeiras chuvas eram fatais pois apodreciam as uvas, estragando assim a excelente qualidade do vinho.

No dia seguinte, logo que pôde, Joana calçou as botas de borracha preta que comprara na feira no dia anterior e dirigiu-se para o rio com passo apressado e silencioso.

Havia na sua alma um misto de alegria e de medo. Estes entrelaçavam-se de tal forma que não era mais possível saber qual dos dois se revelava mais forte.

Por vezes estremecia. Enquanto caminhava, os ramos pendentes das árvores tocavam de leve os seus ombros nus e emaranhavam-se nas suas tranças compridas que, com o sol, se tinham tornado ainda mais lustrosas e mais douradas.

À sua volta a paisagem tomava um deslumbrante ar outoniço. As primeiras folhas desprendiam-se das árvores num abandono desencantado. Volteavam no ar incessantemente formando um tapete multicolor e irregular que rangia sob o peso dos seus passos.

Quando chegou junto do rio, para seu enorme espanto, verificou que a pérola se encontrava exactamente no mesmo local onde a encontrara cinco meses antes.

Joana empalideceu e disse para si:

– A pérola ainda está aqui! Que crueldade! Pobre peixe! O que eu fiz! Abandonei-o durante tanto tempo! Como deve ter sofrido enquanto eu me divertia…

E dando à sua voz doce um tom de doçura chamou baixinho:

– Ó peixe! Ó peixe vem cá! Já se foram todos embora! Já podes voltar! Por favor aparece… Eu já estou aqui.

Mas para seu grande espanto e desilusão o som da sua voz perdia-se tão rapidamente na vastidão da Terra que parecia nunca ter sido proferido. E era então o silêncio forte, duro e profundo que reinava.

Esperou toda tarde sentada no rebordo do rio, desfolhando os crisântemos e os malmequeres, cantarolando baixinho e baloiçando as pernas. Achava que o peixe apenas se ausentara durante algum tempo, provavelmente para ir procurar comida, mas voltaria brevemente.

E aquela longa espera que, noutros momentos lhe poderia parecer penosa e desconfortável, parecia-lhe agora agradável, pois trazia consigo a certeza de que aquela amizade não era uma amizade vulgar.

Às vezes o vento abanava levemente o pequeno canavial que se encontrava junto ao rio. Joana voltava rapidamente a cabeça julgando adivinhar algum movimento do peixe.

Esperou horas e horas sem sentir o passar do tempo, em se deixar vencer pelo cansaço ou pelo desânimo.

Às vezes para preencher o vazio do tempo imaginava respostas para possíveis perguntas que o peixe lhe colocasse. Recriava o futuro e moldava-o à sua maneira e este tomava então proporções inimagináveis. E cada dia era como se fosse o primeiro, cheio de certezas deliciosas e também de grandes promessas.

Joana mais do que nunca gostaria que aquele momento fosse igualzinho aos que viviam os artistas que faziam malabarismos e traziam a ilusão. Gostaria de puder transformar magicamente as coisas em que tocava, mudar a realidade, como faziam os artistas do circo que vinham pelo Natal à sua aldeia.

De vez em quando as suas pernas entorpeciam. Levantava-se um pouco mas sem nunca sair do mesmo local.

E morosamente as horas iam passando.

Mas, para sua grande mágoa, o peixe não apareceu.

Pela primeira vez pôs a hipótese de que a longa espera a tinha levado irremediavelmente a perder para sempre aquele peixe que ela sabia ser único, excepcional.

No entanto, sem nunca desanimar, voltava todas as tardes ao mesmo local. A concha continuava lá mas do peixe não havia qualquer sinal. Mas por vezes a profunda e dura ausência do peixe tomava presença na concha que ali continuava. Isso encorajava-a impedindo-a assim de desistir das suas intenções. Dizia para si com ar sério:

– Há-de voltar! Tenho a certeza! Só tenho que ter paciência e saber esperar…

E com a entrada do Outono chegaram os primeiros ventos. Depois veio a neve, as geadas fortíssimas que congelavam a Terra inteira e também as trovoadas, as chuvas avassaladoras que pareciam diluir as terras, arrastando-as sem piedade.

As águas diluviais encheram tanto o estreito rio que este transbordou do seu leito, alagando parcialmente os terrenos à sua volta, destruindo as poucas ervas e arbustos enregelados pelo duro Inverno.

Joana não pôde por isso voltar mais ao rio sozinho.

 Então os dias já de si tão monótonos tornaram-se ainda mais monótonos, mais frios e mais arrastados. A sua tristeza tornava-se ainda mais triste.

Às vezes quando o caudal diminuía via António partir, levando consigo o picão de pontas muito aguçadas, o enorme cinzel pontiagudo e o pesado martelo. Sabia que este se dirigia para o moinho para picar as mós já gastas de forma a que as pequenas saliências moesse mais facilmente os grãos de cereais. Joana sentia enorme vontade de ir com ele. Sabia que este trabalho demoraria algumas horas o que lhe daria hipótese de observar longamente as águas turvas que deslizavam velozmente na grande represa. Não podia no entanto fazê-lo pois todos concordariam que não havia razão para ir com o criado e ficar ao frio durante horas dentro do velho moinho sentada nos sacos de farinha sem fazer nada.

Embora não admitisse, Joana sabia que não havia nenhuma hipótese de o peixe se encontrar na represa. Ao deslocar-se para lá teria de sofrer a pressão da queda da água e não havia razão que justificasse tão grande esforço.

Joana amargurada disse para si:

– Mas por que motivo é que ele se ia dirigir para lá? É uma ideia completamente pateta, sem qualquer fundamento! O mais certo é que nem saiba que o procuro.

Às vezes atravessava com Matilde a pequena ponte de madeira para ir ao pequeno moinho recolher a farinha moída que formava no chão um enorme montículo branco.

Enquanto que esta a guardava dentro da grande caixa de madeira e dentro de enormes sacos, Joana olhava, no entanto, com atenção as águas acastanhadas da represa.

 Às vezes sentava-se no chão carcomido e espreitava pelos buracos que o tempo tinha aberto nas tábuas e olhava as águas revoltas e atarefadas.

Sabia no entanto que não havia qualquer esperança de ver o seu peixe. Não se arriscaria de certeza pelos terrenos alagadiços, cheios de covas e de ciladas.

 

 

 

 

 

 

 

 

V

 

Chegou de novo a Primavera. A seiva corria viçosa nas veias das árvores e reverdecia os troncos adormecidos pelo Inverno rigoroso. A algazarra dos pássaros ecoava no ar morno e diáfano e trazia de novo vida à quinta adormecida pelos longos meses de enorme frio. Os animais seduzidos pelo calor primaveril faziam a corte para conquistar o coração da sua eleita.

A alegria de Joana nunca fora tão grande e o seu sorriso tão aberto!

Recomeçaram então os longos passeios.

Certo dia, como já fizera inúmeras vezes, meteu a sua cesta no braço e dirigiu-se em direcção  ao rio.

As águas tinham retomado o seu caudal habitual. Deslizavam pacatamente sobre o leito revolvido. Havia apenas aqui e ali grandes sulcos na terra mole, pegadas frescas dos rebanhos, restos de ervas e de galhos que tinham sido despedaçados pela brutalidade das águas.

Uma enorme angústia apoderou-se repentinamente da sua alma amargurada.

Durante horas e horas, olhou atentamente o leito do rio. Tentou perceber o que se passava e concluiu que o seu peixe não estava ali.

– De certeza que esperou demasiado por mim e desistiu. Isso é normal quando não temos razões para esperar!

Mas mal proferiu estas palavras achou-as inadequadas, estranhas e desajustadas. Não percebia como pudera por momentos pensar que o peixe a esperara.

– E se ele não souber que eu existo? Mas isso é possível – disse para si desalentada.

Mas após alguns segundos continuou:

– Mas foi por ele que os meus dias sombrios se tornaram claros, foi por ele que eu deixei de dormir, foi por ele que eu corri sufocada até ao rio, foi por ele...

E, pela primeira vez considerou também que este podia já não estar mais vivo ou então que se tinha perdido irremediavelmente nas águas diluviais como acontecia todos os anos com milhares e milhares de peixes.

– O rio é estreito mas é de certeza muito comprido. É bem provável que tenha sido arrastado pela força do caudal e não saiba agora encontrar o caminho de regresso – disse para si com as lágrimas a jorrarem-lhe dos olhos e lançando um profundo suspiro.

E, como acontecera no início do Outono, Joana chamou-o de novo:

– Ó peixe…Ó peixe, ó peixe… sou eu! Não me conheces? Eu já voltei.... Diz alguma coisa…Vem aqui… Não fiques calado.

Joana não sabia o que dizer. As palavras pareciam-lhe duras, difíceis de encontrar, de escolher pois ora lhe pareciam pouco sonoras, ora lhe pareciam exageradas, inadequadas.

– Por favor não faças isso…por favor aparece – continuou. – Não imaginas como foram tristes e vazios todos estes meses.

Enquanto chamava pelo peixe olhava as águas com atenção e tudo o que se encontrava à sua volta. Escutava também o mais pequeno barulho com esperança de ver algum movimento invulgar. Mas por mais que escutasse atentamente apenas ouvia o som cantante das águas na pequena represa e o ciciar dos arbustos que a aragem fazia estremecer molemente.

Depois de alguns minutos de silêncio retomou sem perder a coragem:

– Tu tens que me ouvir. Eu tenho uma coisa importante para te dizer… Fiz tudo a pensar em ti! Procurei-te durante todos estes meses. Ninguém podia saber de nada. Foi isso que eu prometi a mim própria…Tu não sabes, mas era perigoso, mesmo muito perigoso. Os meus primos são umas pestes! Eu não queria que tu corresses perigo! Eu não te conheço muito bem, mas tu já és tão importante para mim!

Então baloiçando ao sabor da corrente e saltando por cima da espuma das águas, Joana, incrédula, viu brilhar o redondo dos olhos do peixe.

Apertou com força as mãos contra o seu peito, encolheu os ombros e deu gritinhos de alegria.

– Não fujas mais! Fica aqui comigo. Vêm aqui por favor…Eu sei que tu és um peixe bom e eu não tenho com quem conversar.

E como se se conhecessem desde os tempos imemoráveis o peixe ficou suspenso na corrente. Depois abriu delicadamente as duas barbatanas e declarou com prontidão:

– Na amizade não pode haver razões para haver amizade.

– É – disse Joana para disfarçar o seu profundo embaraço pois na verdade sentia-se profundamente envergonhada com as palavras que proferira.

– Sim – continuou o peixe com voz pausada e firme. – Como te ia dizer não pode haver razões para existir amizade. É-se amigo porque se é amigo. Gosta-se porque se gosta. Está-se porque é preciso estar. Às vezes é preciso dizer tudo e outras estar sem dizer nada. Não podes querer ser minha amiga porque estás só. Eu também estou só e não escolhi os seixos do rio para meus amigos. No entanto é neles que eu às vezes repouso, me escondo ou me aconchego quando estou em perigo. É preciso saber escolher e escutar a voz do coração.

O peixe calou-se um pouco e entrou numa profunda e estranha melancolia.

Depois cortou de repente o constrangedor silêncio e acrescentou com uma voz doce e pausada:

– Mas se queres ser minha amiga tens que ser como os seixos do rio ou melhor, tens que ser muito mais do que os seixos do rio.

– Eu já imaginava que era assim.

O peixe fez uma pequena pirueta que mais parecia uma acrobacia difícil e continuou:

– Sabes, às vezes quando a brisa sopra um pouco mais forte, eu sinto intensamente o perfume dos narcisos, das violetas, das rosas, dos cravos, dos lírios, do jasmim dos gladíolos e às vezes até do tomilho e do alecrim. Há perfumes dos quais eu gosto e outros de que não gosto. É assim a amizade.

Joana olhava o peixe com os olhos muito redondos sem ter compreendido totalmente o sentido das suas palavras. Pareciam-lhe um enigma. Sabia apenas que estas a deliciavam, a encantavam com a sua rara beleza, com a magia dos seus sons.

Considerava no entanto que não era mesmo nada importante se não entendia o sentido de todas as palavras. Que valor tinham estas face aquilo que sentia pelo seu peixe? Que importava se estas não expressavam com rigor aquilo que pretendiam dizer? Pareciam-lhe mesmo supérfluas, desprovidas de qualquer sentido, inúteis.

O peixe volteou no ar e continuou:

– É preciso saber guardar o que é precioso. A amizade mais do que tudo…Ela é qualquer uma das flores de que te falei. Mas tu só escolhes aquela que te agrada pela sua beleza, pela sua raridade ou pelo seu perfume. Escolhes aquela que tem a ver contigo! Todas as flores são belas e perfumadas, mas nem todos os perfumes se adequam à tua sensibilidade.

E depois para que a flor cresça e dela retires o seu perfume é preciso saber aconchegá-la do frio, resguardá-la do calor. É preciso saber regá-la para não a deixar secar mas também não a destruir com excesso de água.

– Claro que é – disse Joana simultaneamente deslumbrada e confusa.

– Eu sei que tu sabes isso! Aliás soube-o desde sempre – acrescentou o peixe. – Mas, como te estava a dizer, não te esqueças de que para isso precisas de a conhecer muito bem e de a olhar atentamente dia após dia. O abandono é a sua morte.

– É isso que Matilde me diz sempre. Mas só agora começo a compreender verdadeiramente o que ela me queria dizer. Ela é muito poética. Eu nem sempre percebo o que ela diz. Mas sei que o que diz é belo e soa bem! Eu gosto muito de ouvir o que ela diz!

Combinaram então encontrar-se todas as tardes debaixo do grande choupo.

E assim sucedeu.

Certo dia, quando regressava a casa, Joana sentou-se debaixo do velho castanheiro que cobria com os seus longos ramos a entrada da alameda.

Havia no chão uma enorme quantidade de castanhas e de ouriços. Esventrou os ouriços que estavam fechados com a biqueira das suas botas. Apanhou todas as castanhas e colocou-as em montículos sobre a erva. Colocou-as depois na cesta onde trouxera o seu lanche. As que não couberam guardou-as nas mangas do seu casaco dando um enorme nó para que estas suportassem o peso.

Apercebeu-se então com consciência que estava no tempo dos magustos. Dentro em pouco voltavam as habituais chuvas devastadoras. As margens do rio encher-se-iam de novo até transbordarem. O seu peixe não podia, por isso, continuar ali pois seria certamente bastante perigoso. Tinha que deslizar pelo rio abaixo até encontrar um local mais calmo e mais abrigado. Desta forma seria impossível continuarem a ver-se e agora que a sua amizade tinha tomado proporções tão amplas, uma separação acarretaria irremediavelmente um grande sofrimento.

Combinaram então que com a sua ajuda de Joana o peixe transporia a ponte de madeira e permaneceria durante todo o Inverno na represa pois aí as águas eram menos turvas e um pouco mais estáveis. Tinha apenas que ser prudente para não se deixar arrastar pelas engrenagens de madeira que faziam mover as grandes mós de pedra e que se lhe afiguravam enormes regueifas de pão-de-ló cinzento.

Para se encontrarem bastaria então que Joana chamasse baixinho o peixe. Ergueria cautelosamente a sua cabeça e viria imediatamente ter com ela.

E foi desta forma que tudo sucedeu.

Sempre que o caudal o permitia, Joana corria apressada em direcção ao rio para se encontrar com o seu novo amigo.

Não podia no entanto demorar-se muito pois se os seus pais se apercebessem que se dirigia sozinha em direcção à ponte iriam pedir-lhe explicações e proibi-la-iam de imediato de o fazer. Era bem provável que a obrigassem a permanecer sempre em casa. Joana não podia reclamar.

Tinha consciência de que a travessia era bastante perigosa mas não o suficiente para a levar a desistir.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

VI

 

E, quando a fecunda e atardada Primavera chegou olorosa e ornada de flores e frutos a sua alegria tornou-se imensurável. Agora podia finalmente correr à vontade pela grande quinta. Já não precisava de correr ofegante para se encontrar às escondidas com o seu novo amigo ou passar as longas horas preocupada e amargurada cogitando sobre o seu destino.

Certa tarde quando os dias eram já tão compridos como as noites, o peixe fechando os olhos para não ver a expressão dorida de Joana disse-lhe com a voz amargurada:

– Já estou aqui há muito tempo. Eu adoro a tua companhia, mas um destes dias terei obrigatoriamente de partir. É meu dever fazê-lo. Não posso deixar-me seduzir pela cobardia. Ela é a destruição da vontade do ser de cada um de nós.

O peixe calou-se. Joana ficou calada também. O peixe não dissera mais nada. Iria respeitar a sua decisão e esperar pelo momento certo para continuarem a sua conversa. Às vezes este nadava tão vagarosamente que parecia ter perdido por completo as suas forças.

Então, sem qualquer espanto, o peixe viu rolar dos olhos de Joana duas enormes lágrimas.

Nesse dia passaram o resto da tarde sem dizer nada, olhando-se ternamente.

Apesar do silêncio profundo, ambos sabiam que entre eles se estabelecera a mais completa das comunicações, a mais enraizada e indestrutível de todas as compreensões.

Mais do que nunca ambos tinham a certeza de que a sua amizade era recente mas seria sem dúvida para sempre.

No dia seguinte quando Joana chegou junto do peixe este tinha um olhar tão sofredor que estremeceu temendo pela sua vida.

Então olhando à sua volta o peixe pegou na pérola que tinha recolhido quando se mudara para a represa e apresentou-a a Joana:

– Esta é a razão da minha partida…

– Meu Deus! – exclamou Joana estupefacta – Eu sabia que a pérola tinha um grande significado. Eu senti-o no mais profundo da minha alma! Nada na vida é por acaso! É preciso saber ler os sinais que ela nos oferece. A pérola era um sinal importante.

– Sabes, – disse entusiasticamente o peixe – desde que te conheci, percebi que apesar de seres ainda criança tens a mais nobre de todas as almas. Não é porque és criança mas porque és a mais nobre e especial de todas as crianças. Eu tenho muita, mesmo muita sorte, por te ter conhecido.

– Estás a exagerar. Sou apenas uma menina com alguma sensibilidade – disse Joana para disfarçar o seu profundo embaraço pois na verdade corava sempre que lhe teciam algum elogio.

– Eu tenho a certeza de que estou certo. Isso raramente me acontece. Vou por isso contar-te a mais cruel e desumana história que alguém, algum dia, pôde ouvir contar ou presenciar.

– Queres ouvi-la?

– Claro que quero – respondeu Joana emocionada.

E dando um enorme suspiro para ganhar coragem começou:

– Há muito, muito tempo, eu vivia num grande aquário de uma luxuosa casa senhorial. O aquário dividia uma grande sala repleta de cristais de belos quadros, de belas tapeçarias, de belos lustres e também de antiquíssimos móveis onde reluziam as pratas valiosíssimas que as criadas poliam arduamente dias após dia. Vivia feliz. Não conhecia as extensas pradarias, o brilho do sol ou a serenidade da lua. Mas o destino quis que eu presenciasse a mais horrível e devastadora história de ingratidão e de falsidade.

– É verdade!? Que horror! – disse Joana com ar triste.

– Certo dia – continuou o peixe com ar amargurado – o senhor daqueles domínios chamou Tomás que era o criado por quem tinha mais consideração. Este tinha como tarefa dar as ordens que recebia do seu senhor. Tomás não era uma pessoa má mas as constantes e invulgares ordens que recebia do seu senhor tinham-lhe enrijecido a alma fragilizada o que o tornava aparentemente cruel, direi mesmo desumano.

O Senhor a quem a vida trouxera grande riqueza mas também a maior de todas tiranias, olhando à sua volta com ar arrogante disse indicando o nosso aquário que se encontrava apenas a alguns metros:

– Nada nesta casa me agrada. Estou farto, farto das mesmas coisas…Cada dia é apenas a continuação do dia anterior. Quero que mandes retirar desta sala este aquário horrível que me aborrece o olhar e me traz um aborrecimento sufocante. Alegrou-me os olhos durante algum tempo mas agora a sua sobriedade impede a minha riqueza de brilhar. Já não posso mais com esta simplicidade de pelintra que enriqueceu.

E olhando atentamente a sala com ar de desdém continuou:

– Nada nesta casa me agrada! Preciso que dês ordens para que seja contratado o mais sábio, o mais eloquente de todos os arquitectos. Quero que a minha casa deslumbre pela sua rara beleza e espante pela sua riqueza.

E assim foram dadas ordens para encontrar com brevidade o mais sapiente de todos os arquitectos.

Certo dia, transpirando e ofegante de tanto andar, chegou à enorme mansão, um velho e respeitado arquitecto. Reuniram-se todos na grande sala atapetada de vermelho que se debruçava sobre uma extensão de terrenos a perder de vista.

– Quero que a minha casa seja reconstruída e que dos seus muros se erga a mais deslumbrante de todas as irregularidades e de todas as simetrias – disse o dono da casa sem qualquer introdução.

– Como, senhor!? Eu não estou a entender – disse o velho arquitecto tremendo e gaguejando. – Isso não é possível…O que me dizeis não tem lógica... E depois, senhor, a vossa casa é sem dúvida a mais bela que algum dia já vi… Basta apenas dar-lhe o conforto que merece e guardar o que dela é fantástico e indescritível.

– Basta – disse escolhendo mais uma vez as palavras mais rebuscadas. – Que sabes tu? A tua lógica não é de certeza a minha. Já falaste demais. A tua sabedoria começa a irritar-me. Não tenho paciência para ouvir opiniões que em nada alteram a minha vontade. Pago-te para que cumpras as minhas ordens sem as discutir. Não precisas de ter ideias. Basta que executes minuciosamente as minhas.

– Mas, senhor, sendo assim não sou necessário. A minha tarefa é criar coisas belas e novas. Tudo isso tem que ser espontâneo e não imposto…

E como se nada tivesse ouvido, o senhor, cada vez mais impaciente retomou:

– Não digas mais nada! Já devias saber que não gosto de ser contrariado. Quero que reconstruas esta mansão de forma a que seja única. Ser-te-ão dadas todas as informações necessárias. Disporás do dinheiro que precisares. Felizmente todos os meus cofres estão repletos de ouro e prata suficientes para executares a teu projecto. Sim, isto porque tenho o privilégio de ser um homem rico. Sabes o quanto isso é importante para um homem?

O arquitecto sem sequer reflectir respondeu:

– Sim, isso é verdade…Mas já vi homens aprisionados pelo dinheiro e escravizados pela abundância…

O Senhor desviou o olhar e, simulando nada perceber, continuou:

– Quero também que sob os meus passos ressoem as mais belas notas de música e que os meus telhados ao serem tocados pelo vento ecoem as mais belas e suaves melodias. Estuda bem as paredes e as distâncias de forma que os sons não sejam deformados pelo eco. Quero quem tudo seja perfeito, diferente, único! Quero que a minha casa aniquile a grande imperfeição da humanidade!

Tinha um ar tresloucado, muito estranho e quase demoníaco. Os seus movimentos ora eram bruscos e desordenados, ora pareciam articulados como os dos bonecos de corda que eu via muitas vezes nas festas que este dava.

O velho arquitecto saiu da sala, cabisbaixo e com ar pensativo. Olhava à sua volta e cofiava as longas barbas. Levava as mãos à cabeça em sinal de espanto e de desespero.

Logo que este abandonou a sala, o dono da enorme mansão mandou chamar Tomás e disse-lhe com ar de desdém:

– Já te disse que não quero aqui este aquário. Não cumpriste o que te disse! Devias saber que as minhas ordens são inquestionáveis e que aquele que não se submete a elas nunca se esquecerá! Nem o facto de teres andado os últimos meses à procura do arquitecto desculpa este imperdoável esquecimento!

Depois tomando um ar ainda mais austero e inflexível acrescentou:

– Apanha imediatamente todos os peixes e mete-os num saco e manda-os deitar ao lixo. São horrorosos! Nenhum, mas nenhum deles me encanta como me encantava. As suas cores irritam-me e o seu brilho já não é o que era. O seu nadar vagaroso e manso causa-me aborrecimento. Não percebo como é que pude encontrar interesse em coisa de tão pouco valor!

Mas Tomás, que talvez tivesse aprendido a gostar de nós, não acatou as ordens do seu Senhor.

Nessa noite, quando todos dormiam, pegou em enormes baldes, encheu-os de água e meteu os peixes lá dentro. Com grande agilidade, dirigiu-se em direcção ao jardim para os deitar na nascente que corria a direito num pequeno riacho em direcção ao rio. Acho que nem sequer pensou se eles iriam sobreviver. Quando tinha executado a sua tarefa apercebeu-se de que apenas eu ficara no aquário.

Assim que me viu disse:

– Pobrezinho! Não reparei que te deixei ficar aqui. Agora é tão tarde. Estou demasiado cansado para me dirigir novamente à nascente do riacho.

Após alguns segundos de reflexão acrescentou:

– Vou colocar este peixe no aquário de vidro revestido a prata e vou pô-lo na pequena sala de jogos junto à grande sala de jantar. De certeza que fica lá bem! Tenho a certeza de que ninguém reparará nele!

Tomás apressou-se a colocar o pequeno aquário em cima do grande armário de ébano repleto de livros antiquíssimos que ninguém lia.

Assim que o Senhor me viu disse com ar indiferente:

– Tiveste uma excelente ideia! Deixa-o ficar aí. Nem dou conta da sua presença! É uma insignificância no meio de todas estas belas peças que coleccionei ao longo de todos estes anos. E depois pensando bem – acrescentou com ar arrogante e encolhendo os ombros com desprezo – mostrar este peixe insignificante será um pretexto para mostrar esta bela e valiosa peça de prata maciça cinzelada pelas mãos do mais hábil ourives do país.

O peixe esforçando-se por dar à sua voz uma expressão de coragem prosseguiu:

– E assim continuei no pequeno aquário, invadido por uma solidão que não sou capaz de descrever e uma angústia que eu não julgava capaz de suportar. Sentia também dolorosamente o arrastar do tempo e das horas mortas. O passar dos dias trazia à minha vida um vazio tão grande, mas tão grande, que era como se repentinamente eu tivesse que carregar o mundo sobre o meu dorso.

– Meu Deus! – disse Joana comovida – Isso é muito, mas muito horroroso! Estou tão orgulhosa! Tu és tão corajoso, meu amigo Como é que conseguiste aguentar uma solidão tão grande?

– Há momentos da nossa vida em que julgamos que não somos capazes de aguentar mais. Mas, verificamos depois que há sempre dentro de nós uma força que parece não se esgotar e que cresce em coragem. Foi isso que me aconteceu.

Por vezes concentrava a atenção em todos os movimentos da casa. Ouvia os passos até deixar de os ouvir. Ouvia o vai e vem das criadas, os passos dos visitantes, o latir dos cães, o chilrear dos pássaros no jardim. Outras vezes imaginava-me nadando velozmente entre desconhecidas pradarias de conchas multicolores em águas transparentes a perder de vista. Às vezes para esquecer a dura realidade imaginava que nada tinha mudado e que continuava ainda a nadar despreocupadamente no largo aquário junto de todos aqueles que já faziam parte da minha vida.

Mas certo dia as coisas tomaram um rumo diferente, direi mesmo inesperado para todos nós. Dezenas e dezenas de homens deram início ao árduo trabalho de reconstrução da casa.

Todos os dias chegavam aos terrenos da bela mansão os mais belos mármores vindos dos lugares mais longínquos, as madeiras mais exóticas, mais nobres e mais perfumadas, os granitos mais raros e brilhantes, os vidros mais cristalinos, as telhas mais transparentes e os magníficos azulejos pintados pelos artesãos mais conhecidos.

Todos os dias, ao cair da noite, o Senhor fazia uma reunião na grande sala que as criadas limpavam arduamente para que não houvesse qualquer vestígio da grande quantidade de poeira que cobria toda a mansão.

O velho arquitecto, dirigindo-se ao dono da casa, fazia sempre a mesma pergunta esperançado que as suas últimas alterações fossem do seu agrado:

– É um belo trabalho, Senhor, não é?

Este alongando molemente os olhos declarava insatisfeito e contrariado:

– É capaz de ser de facto um excelente trabalho. No entanto, não me encanta! Não há grande originalidade!

E, como sempre, o arquitecto partia desiludido e de cabeça baixa como se de repente toda a sua capacidade criativa se esvaísse face às exigências daquele homem que, para sua vaidade, procurava o que não podia encontrar.

Certo dia, como habitualmente, houve nova reunião. O dono da casa estava mais irritadiço do que nunca. As criadas com os seus invulgares aventais de seda vermelha cumpriam receosas as suas tarefas árduas. Iam e vinha em bicos de pés temendo incomodá-lo e assim desencadear a sua ira.

Quando o silêncio era já tão profundo que se tornava quase sufocante, este levantou a voz que se tornara rouca e disse:

– Tudo isto está longe, muito longe do que esperava. Maldição! Grande maldição!

Não há nada que esteja à altura daquilo que sempre imaginei. Não te esqueças que te pago para que estejas à altura dos meus sonhos!

O velho arquitecto tremendo e olhando para o chão declarou:

– Como vos posso agradar, Senhor? Passei horas e horas a reflectir sobre o projecto. Rasguei resmas de papel repletas de desenhos que levei horas a executar. Muitas foram as vezes em que me levantei durante a noite para anotar, esquematizar ou executar uma ideia que me parecia fantástica, fabulosa…

– Chega. Não fales. Estou farto de ouvir sempre os mesmos argumentos – disse dando um empurrão aos montes de papéis que se encontravam sobre a mesa e que logo se espalharam pelo chão – Detesto a mediocridade Tens a obrigação de saber que não quero ouvir queixumes. És tu o arquitecto. Já te disse que te pago para que faças um trabalho à altura da minha pessoa.

E coçando a cabeça com um ar assustador e tresloucado continuou:

– Claro! Mas tu não sabes, de certeza, como um sonho é importante para um homem! Claro que não sabes! Tu não compreendes que é preciso que a minha vida seja plena, fecunda e que cada momento seja irrepetível, único, inexistente. Tudo isto tem que acontecer, custe o que custar!

O velho arquitecto não sabia o que dizer. Estava vermelho. As suas mãos tremiam violentamente. Parecia que de repente tinha envelhecido completamente. Olhava à sua volta como se esperasse que alguém viesse em seu auxílio.

E após alguns minutos de profundo silêncio o Senhor acrescentou:

– É bom que este projecto me agrade. Não respondo pelos meus actos. E não te esqueças de que sou o dono de todos estes domínios e de que sobretudo odeio ser contrariado.

Depois, reunindo todas as suas forças, pegou num cadeirão de seda verde matizada de azul que se encontrava ao lado do enorme piano de cauda e arrastou-o para o meio da sala. Instalou-se nele de braços abertos como se fosse fazer um discurso e continuou:

– Sabes o que me espanta? Tu és considerado o melhor arquitecto do país. Imagino como serão os outros.

Depois rindo sinistramente e encolhendo os ombros com ar de desprezo continuou:

– Gente reduzida e nula que alimenta gente sem desejos! É isso que são todos! Brutos que não sabem o que é belo, que aceitam tudo sem nada discutir. Não há nada pior do que não saber querer! Dá dó ver a aceitação calma e resignada de todos! Pobres criaturas que seguem pacientemente o rebanho e não sabem ser ovelhas tresmalhadas!

O arquitecto parecia petrificado tal era a sua humilhação. Quis levantar-se e sair, barafustar, dizer que aquele homem era afinal um inculto e insensível, incapaz de apreciar o belo. No entanto, acabou por não dizer nada. Pela primeira vez, percebeu que já não era mais completamente livre. Aquele homem, a sua tirania e o seu despotismo tinham-se tornado perigosos e obrigavam-no a agir de acordo com a sua vontade. Aqueles territórios eram extensíssimos. Não sabia o que lhe podia acontecer. Lembro-me muito bem de o ter ouvido dizer baixinho para si:

– Meu Deus, como lembro com enorme saudade e consolação os elogios que recebi ao longo da minha vida! E eu não soube valorizar esses elogios por me julgar digno deles! Mas juro que o meu reconhecido mérito não se irá desvanecer por causa de um grosseiro que não sabe apreciar o que deve ser apreciado e se esconde atrás da tirania como animais na sua toca.

Não sei se o Senhor ouviu alguma destas palavras. Mas quase tenho a certeza que não…Era demasiado arrogante para ficar calado. Apenas sei que de seguida se dirigiu a todos os que participavam na execução daquele projecto e proferiu uma tal quantidade de palavrões que todos estavam extremamente assustados. Ninguém se atreveu a dizer uma única palavra.

Depois, como se toda a sua ira se tivesse esgotado, ordenou a todos que saíssem da sala.

Assim que se viu sozinho, calçou as suas enormes pantufas e vestiu o seu robe de seda vermelha que lhe dava um ar de rei sem trono. Pediu à criada que lhe trouxesse um abundante jantar. Colocou-o num tabuleiro e comeu sentado no mesmo cadeirão onde proferira o seu discurso. Os seus olhos estavam tão vermelhos e brilhantes que pareciam sair das orbitas. Engolia a comida quase sem a mastigar enquanto batia compassadamente com os pés no chão.

Levantou-se repentinamente antes de ter terminado o jantar. Começou a percorrer a sala de uma ponta à outra, gesticulando, falando sozinho, bufando como se tivesse feito um enorme esforço ou uma longa caminhada.

Depois como se se estivesse a dirigir alguém disse:

– Eu posso! Eu sou o Senhor de tudo isto! Nada ficará impune. Juro que me vingarei se tudo não ficar como eu quero!

Nesse momento percebi que falava verdade. Quis prevenir o arquitecto mas não pude fazê-lo. Um homem nunca poderia ouvir a voz de um peixe! Eu não passava de um peixe insignificante e solitário que nadava monotonamente no pequeno aquário que ornava a sala. E depois, eu sabia, a um peixe não lhe foi dado o direito de falar!

– Devias ter sido mais corajoso. Devias ter-lhe dito o que se passava.

– Tu não conheces os Homens. São demasiado obstinados para ouvirem a voz do que lhe parece insignificante.

E tomando um ar ainda mais pensativo continuou:

– As obras decorriam a um ritmo acelerado. A casa a pouco e pouco começava a tomar forma. Ao cair da noite continuavam as habituais reuniões. O Senhor revelava sempre insatisfação apesar de todos se sentirem deslumbrados com a rara beleza da mansão, com a beleza e a raridade de todos os materiais.

Decorridos alguns meses a casa ficou pronta. O Senhor, acompanhado pelo arquitecto, percorreu uma a uma todas as divisões. Havia em todos os rostos um profundo espanto tal era a perfeição de tudo.

Mas o Senhor olhava à sua volta e dizia com um olhar tresloucado e enterrando as mãos nos cabelos que pareciam eriçados:

– Dei-te ordens para que sob os meus passos surgissem as mais belas melodias e para que as telhas produzissem sons melodiosos. Não é isso que estou a ver… É tudo tão banal que fere o olhar!

– Senhor, basta que dês ordens para que estas engrenagens sejam postas a funcionar e ouvireis então músicas fantásticas que deliciarão os vossos ouvidos e encantarão todos os que se encontrarem na vossa casa. Só ainda não o fiz porque entendi que devíeis ser vós o primeiro a apreciá-los.

Quando a noite chegou, aproveitando a confusão da festa, deu ordem para que prendessem o arquitecto na cave da mansão.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

VII

 

A partir desse dia o Senhor passou a ter um ar ainda mais estranho. Muitas foram as vezes em que a meio da noite o ouvi percorrer a sala de uma ponta à outra com ar de quem vai tropeçar. Muitas foram as vezes em que o vi sentar-se na grande sala onde me encontrava. Tinha nos ouvidos enormes bolas de algodão que pareciam abafar as suas grandes orelhas. Às vezes quando pisava o chão ouvia-se uma música tão delicada e tão serena que parecia tocada por mãos invisíveis. Mas este tapava os ouvidos com as suas mãos grossas e compridas e abanava a cabeça com ar rude e incomodado.

Certa noite quando já todos dormiam mandou acordar todos os seus criados. Estes, esfregando os olhos com ar sobressaltado e sem nada compreender, reuniram-se de imediato na grande sala.

– Não ouvis uma voz que repete sempre as mesmas frases? Não ouvis o vento falar quando sopra do sul? Não ouvis as telhas lançarem gritos de dor ao mais pequeno movimento?

Os criados não sabiam o que dizer.

Com o olhar baixo dois deles disseram quase em uníssono e escolhendo cada uma das palavras que proferiam:

– Não, Senhor, não ouvimos nada do que nos contas. Muitas são as vezes em que adormecemos completamente embalados pela música que ecoa sob os vossos passos. Nunca ouvimos gritos mas sons tão doces que encantam a nossa alma pois são tão perfeitos, tão delicados, tão harmoniosos que parecem tocados por mãos de anjos.

– Tocadas por mãos de anjos? Quereis então insinuar que tudo o que ouço é fruto da minha imaginação, fruto da minha fantasia, que eu estou louco, que eu sou o único a ouvir a voz do vento, das telhas e dos gonzos?

– Que vos dizem as vozes e os sons? – perguntou corajosamente Tomás olhando o senhor nos olhos com ar penetrante.

Pela primeira vez este pareceu vexado, desarmado. Percebeu que havia nos olhos de todos, um mal disfarçado sentimento de enorme piedade.

– Disse palavras sem nexo – respondeu prontamente. – Eu acho que de facto apenas ouço o vento que faz vibrar as telhas e produz os sons mais suaves que algum dia, alguém pôde ouvir. Foi para isso que paguei uma enorme quantidade de dinheiro ao velho arquitecto.

Depois virou as costas e anunciou:

– Quero que amanhã se levantem à hora habitual. Não há motivos para que o ritmo das coisas seja alterado. Que ninguém ouse atrasar-se!

Passado algum tempo vi-o voltar novamente à sala arrastando os pés ainda com mais dificuldade e dizendo baixinho:

– Devo estar muito cansado. É por isso que eu ouço sempre os mesmos sons que mais parecem palavras. Não há razão para me preocupar…Dentro de poucos dias tudo voltará à normalidade. Gozarei então plenamente a felicidade a que tenho direito!

Estendeu-se no sofá e tentou adormecer. Mas o seu aparente repouso durou apenas alguns minutos. Levantou-se bruscamente e começou novamente a falar sozinho, olhando à sua volta completamente desnorteado:

– Não, não estou louco. Tenho a certeza! Mas não, não é possível! Todos ouvem as belas melodias excepto eu. Paguei para poder usufruir da beleza desta casa e todos adormecem ao som das mais doces notas e eu sou o único que fico acordado até ao amanhecer, sou o único que tapo os meus ouvidos para não ouvir nada, sou o único que mete a cabeça debaixo do travesseiro para ouvir o menos possível para que os meus sons sejam pouco nítidos. Isto não pode estar a acontecer. Eu não mereço isto!

E pondo-se em bicos de pés como se estivesse a ser espiado, espreitou pelas janelas e portas dizendo para si:

– Já sei o que vou fazer! Encarregarei uma dezena de homens de guardar a minha casa e uma outra vigiará noite e dia todas as engrenagens que emitem sons. Estas funcionarão apenas quando der ordens para que isso aconteça. Passarei finalmente a ter a paz que tanto mereço. Sim, porque eu mereço ter paz.

Mas durante meses ouvi-o circular pela casa e sentar-se cabisbaixo na grande sala mantendo sempre os ouvidos tapados como se o mundo fosse um cruel inimigo.

– Meu Deus! Mas porque é que ele mantinha o arquitecto trancado? Ele sabia que este estava inocente. Não posso acreditar. Aproveitou a confusão da alegria para o mandar prender. Por vezes a crueldade dos Homens não tem limites. Eu sou tão pequena e já vi tantas coisas… Como é possível que tudo isto aconteça!? – disse Joana convicta de que a sua verdade era a única possível.

– És ainda muito criança mas brevemente aprenderás que a cegueira humana é a mais cruel de todas as cegueiras porque impede que se veja qualquer verdade com lucidez. E sem a lucidez não se pode fazer nada contra a cegueira!

– É verdade! Matilde diz muitas vezes que é a vaidade que faz com que os olhos deixem de ver e que a cegueira é um estado de loucura! Ela tem razão. Foi isso que aconteceu.

– Ouve então o que tenho para te dizer – pediu o peixe.

– Eu quero muito ouvir o que tens para me contar. Mas é tudo tão triste, tão trágico! Eu não sei o que dizer!

Certo dia – continuou o peixe – o Senhor entrou na sala acompanhado de Tomás. Falaram, durante muito tempo, direi mesmo algumas horas. Pela longa conversa percebi que a cave da grande mansão era fechada com duas enormes portas, tão pesadas que era preciso três homens para as abrirem. Fiquei também a saber que as paredes eram tão grossas que era impossível destruí-las sem pôr em perigo a estrutura da casa. Tinha sido neste local que durante séculos tinham sido encerrados os homens importantes que tinham cometido crimes. Percebi também que o arquitecto recebia a comida e as roupas através de uma estreita fresta que se abria a toda a largura da parede.

Nesse dia Tomás trazia consigo um monte de chaves que tilintavam ao mais leve movimento.

Por breves instantes o meu coração ficou cheio de esperança pois pensei que finalmente iriam abrir as portas e libertar o prisioneiro inofensivo. Depois percebi que o Senhor entregava as chaves a Tomás para que este as guardasse em segurança. Ouvi-o dizer que estava muito cansado e ocupado para ter que tomar a seu cargo um molho de chaves como se fosse um carcereiro. Guardaria consigo apenas os códigos das portas no caso de estes serem necessários.

Assim que Tomás saiu o Senhor, completamente desnorteado, pegou nos pedaços de papel onde estavam escritos os códigos, dobrou-os cautelosamente e meteu-os dentro de uma concha que trazia no bolso. Dirigiu-se em direcção ao aquário onde eu nadava. Nele havia uma espécie de pequena câmara falsa. Abriu-a com ar nervoso. Foi aí que ele escondeu a pequena concha que como já deves ter percebido é a pérola que eu guardo comigo.

– Tu presenciaste tudo e não pudeste fazer nada.

– A vida não é o que nós queremos mas o que ela nos oferece. Um dia perceberás isso.

O peixe esforçando-se por organizar o seu discurso continuou:

– Os meses passaram. O senhor passou a ter um ar tão doentio e melancólico que se tornara quase irreconhecível. Emagrecera bastante e tornara-se quase cadavérico. Certo dia mandou chamar Tomás. Confessou-lhe que nenhum dos homens que guardava cautelosamente a sua mansão era capaz de impedir que a mesma voz o repreendesse, severa e incessantemente, da atitude que tinha tomado. Queria por isso libertar o arquitecto e pediu, por isso, a Tomás que o fizesse. Perante o seu ar agonizado este lembrou-o de que apenas lhe confiara as chaves e não os códigos que abriam cada uma das quatro fechaduras das três portas. Nesse momento vi-o colocar as mãos sobre a cabeça como se o ameaçasse uma tragédia incontornável. Olhava à sua volta com um ar agonizado, como se o ameaçasse a derrota da sua vida.

Percebi pelo seu desespero que tentava lembrar-se do local onde colocara a sequência das letras que permitia a abertura das grossas portas. O seu sofrimento era tão forte que eu próprio, não sei como, por breves instantes, tive pena dele. E o mais doloroso era que eu vivia ali e sem o querer tinha presenciado tudo.

Ainda pensei em fazer alguma coisa para ajudar mas percebi que qualquer palavra que proferisse apenas aumentaria a sua ira e poria consequentemente a minha vida em risco. E se isso acontecesse tudo ficaria irremediavelmente perdido. A partir desse dia o Senhor deixou de dar festas faustosas com dezenas e dezenas de convidados, de dar jantares que entravam pela noite dentro. Encerrou-se no seu quartos saindo apenas para dar as habituais ordens diárias.

Todos os dias ouvia-o dizer invariavelmente:

– As ordens estão dadas. Agora vou retirar-me para os meus aposentos e não quero ser incomodado com o que quer que seja.

E durante o dia era como se a sua presença não existisse.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

VIII

 

Certo dia levantou-se ao meio da noite e dirigiu-se em direcção à sala. Foi então que reparou que em cima do móvel de ébano se encontrava o pequeno aquário onde eu nadava com enorme melancolia. Foi como se me tivesse visto pela primeira vez. Não se lembrou que era aí que guardava a concha. Repentinamente uma grande ira invadiu a sua alma e o seu corpo. Com a cara incendiada gritou com todas as suas forças enquanto apontava o dedo na minha direcção:

– Maldito! Maldito! Nadas alegremente neste aquário luxuoso como se o mundo fosse todo teu e eu que sou o dono do mundo, não olho, não sinto não quero! É como se tivesse morrido…É como se os meus olhos se tivessem fechado e os meus ouvidos tivessem perdido a audição. É uma injustiça, uma grande injustiça!

As enormes portadas da sala estavam completamente abertas. O silêncio era profundo. Do exterior vinha um vento tão fresco e tão suave que dava vontade de o enlaçar, de o prender para o ter para sempre.

E com enorme brusquidão, o Senhor agarrou o aquário com as duas mãos e atirou-o ao jardim através da grande janela que se encontrava ao lado do móvel. O aquário desfez-se em mil pedaços. Com a queda a pérola libertou-se. Agarrei-a de imediato e coloquei-a debaixo de uma barbatana. Estava completamente atordoado e sem forças. O mundo parecia rodar à minha volta. Por momentos pensei que a minha vida acabara então, que de nada valia ter comigo a pérola que podia salvar a vida de um homem. Essa constatação tornou ainda mais duro aquele momento tão difícil.

Mas o destino quis que eu tivesse caído apenas a alguns metros da nascente. Com uma coragem que eu próprio não sabia ter, agarrei a concha com a boca e dirigi-me em direcção à água com enorme dificuldade em me deslocar pois quase não conseguia respirar. Estava tão desorientado que por momentos me senti infeliz por não ter morrido. Era como se o mundo deixasse de ser mundo. Era como se nele se tivesse aberto uma brecha negra e a vida deixasse de ter qualquer sentido. Eu estava irremediavelmente sozinho, mais sozinho do que no aquário pois trazia comigo a pérola que trazia consigo a solidão e a vida de um homem. A vida é um bem precioso que deve ser conservado com grande cuidado. É o bem maior de cada um de nós.

Depois, completamente perdido, comecei a descer o rio sem saber porque o fazia, sem nada planear. Era como se a vida me empurrasse para o abismo e eu não pudesse fazer nada para o impedir. Foi então que te conheci. O resto tu já sabes…

– Que horror, meu amigo! É tudo tão triste! Não é possível. É muito, muito duro para um peixe!

– Para um homem também – acrescentou com ar absorto.

O peixe volteou no ar como se tentasse fechar o passado e continuou:

– Acho que foi a minha solidão, foi o silêncio da separação que me ensinou a ver o que me rodeia com olhos mais atentos. Sei que foi a solidão que me fez perceber que o arquitecto precisava de alguém, que os meus olhos não podiam ficar cegos, e os meus ouvidos não podiam deixar de ouvir…A vida ensina-nos a ver. Basta estarmos atentos! E é quando estamos mais frágeis que aprendemos a prestar atenção não apenas às grandes coisas, mas também às que antes nos pareciam insignificantes!

– Foi o que me aconteceu quando certo dia conheci um certo peixe. Eu aprendi a ver e a ouvir. Isso tornou a minha vida cheia de sol e também muito, muito perfumada.

O peixe sorriu tão profundamente que os seus olhos, por momentos, tomaram um brilho especial.

Joana riu também, espantada com a naturalidade das palavras que proferira. E parecia que por alguns instantes, como sempre desejara, todas preocupações tinham desaparecido como acontecia nos passes de magia executados pelos artistas do circo.

Mas após alguns minutos continuou:

– É por isso que eu tenho que partir! Não pode haver hesitações! Tenho que partir o mais breve possível. Se não o fizer a minha vida ficará irremediavelmente presa à concha que tenho comigo e será sempre enevoada.

– Mas se partires vais pôr a tua vida em risco e é possível que não possas fazer nada. Até eu que sou pequena sei isso!

– Um dia saberás que é o risco que nos faz ser mais do que o que somos. É o risco que nos tira da nossa insignificante condição. É a ausência de risco que faz que cada dia seja igual a si mesmo e que não haja lugar para o sonho. Sem o sonho a vida é apenas metade da vida! É isso que eu não quero.

– Espera, tive uma ideia – disse efusivamente Joana. – Vamos esconder a concha num local seguro. Juntos vamos encontrar uma solução em que haja pouco risco.

– Sim, tens razão. É isso que vamos fazer – disse o peixe encorajado. – Não sei porquê mas sinto que em breve encontraremos uma saída. É tão bom acreditar de novo nas coisas quando já as julgamos perdidas.

– Depois vou encontrar uma solução para resolver esta situação – disse Joana. Tenho a certeza de que isso é possível. Eu ouço Matilde repetir constantemente que só a morte não tem solução. Ela tem toda a razão. Aliás não sei porquê mas ela tem quase sempre razão.

Joana passou a noite acordada, analisando minuciosamente cada uma das pessoas que conhecia e mesmo aquelas de quem apenas tinha ouvido falar, na esperança de que alguma delas a pudesse ajudar a encontrar uma solução.

Mas foi em vão que reuniu todas as virtudes e todos os defeitos de cada uma. Na sua análise, ora sobressaía a tirania, a vaidade, a arrogância, a indelicadeza, a falta de humor ou mesmo o raro sentido de justiça.

Ainda pensou em pedir ajuda a Matilde pois conhecia a velha criada desde que nascera. Fora também ela que ajudara a criar a sua mãe. Mas lembrou-se de imediato do seu ar mal-encarado quando estava atarefada a fazer a marmelada, a geleia ou as compotas. Lembrou-se também de a ver regatear com ar avarento os ovos que tinha para vender, ou então da forma como exigi exageradamente que baixassem o preço quando comprava as sementes e as alfaias.

Esta análise tão minuciosa e tão exigente levaram-na a pensar que tal constatação se devia de certeza ao facto de ser ainda uma criança.

Joana disse para si:

– Se os adultos olhassem cada um dos que os rodeiam com olhos tão intolerantes, em pouco tempo ver-se-iam irremediavelmente sozinhos. E eu vejo-os sempre em grupo com um ar muito natural e despreocupado.

E, sem qualquer esperança, Joana adormeceu vencida pelo profundo cansaço já o dia começava a raiar.

No dia seguinte mal o sol se levantou foi tomar o pequeno-almoço. Dirigiu-se ao rio para ir ter com o seu peixe. Voltou novamente a seguir ao almoço. Conversaram horas e horas.

Mas por mais que ambos fizessem um enorme esforço para encontrar uma solução, nenhum dos caminhos encontrados lhes parecia seguro e razoável.

Ao fim do dia regressou a casa tão desanimada que sentia uma enorme vontade de chorar sem parar.

Foi com enorme custo que engoliu em seco os soluços que lhe pulsavam no peito. Sabia que não podia chorar. Quando isso acontecia, ficava com os olhos muito vermelhos e muito inchados. Se isso acontecesse iriam querer saber o que se passava. Como explicaria uma tristeza tão súbita?

Tinha a certeza de que não iriam sossegar enquanto não lhe arrancassem uma confissão que os satisfizesse.

A semana chegava ao fim. No dia seguinte era o primeiro Sábado do mês. Ia com a mãe, com Matilde, António e Maria à cidade para comprar algumas roupas frescas. Era dia de feira. Aproveitariam também para comprar alguns utensílios necessários ao amanho da terra.

Mais uma vez Joana gostaria de não ir, mas não encontrava justificação para não o fazer. Qualquer desculpa levaria a mãe a desistir de lhe comprar a roupa que tanto queria! O Verão aproximava-se. Queria sentir-se bonita, poder olhar-se com agrado no espelho oval que ornava o seu quarto. E depois, quando chegasse o início do Verão não queria usar os mesmos vestidos e calçar as mesmas sandálias! Tinha crescido e isso tornava-se evidente nas suas roupas! Não queria sentir-se como se usasse roupas emprestadas! Detestava sentir-se olhada como uma provinciana por aqueles primos exageradamente arranjados e esmerados!

E, enquanto faziam as compras, para grande espanto dos criados e da mãe, Joana manteve-se quase sempre calada e não revelou qualquer emoção face ao que lhes mostravam o que facilitou a escolha que era sempre difícil.

Desejava voltar para casa o mais breve possível para se refugiar no seu quarto até ao dia seguinte. Estava muito desorientada e infeliz! O que o seu peixe lhe contara era demasiado trágico, demasiado doloroso.

– Como é que posso fazer de conta que não se passa nada? Não sou nenhuma insensível! É a vida de um homem que está em perigo! A vida não pode ser desprezada em caso algum…E depois, esta história preocupa o meu peixe. Tudo o que preocupa o meu peixe também me preocupa…

Nesse dia quando entrou no seu quarto sentiu um aconchego estranho mas delicioso. Este aparecia-lhe mais do que nunca como um espaço de liberdade, só seu. Podia estar sozinha para , mais uma vez, tentar encontrar uma forma de libertar o prisioneiro que não conhecia mas que já fazia parte da sua vida.

Disse para si:

– Tenho que encontrar uma solução o mais rápido possível. Dentro de duas semanas os primos voltarão como acontece todas as férias. Nem quero pensar! Os encontros com o meu peixe terão de ser mais breves, espaçados o que vai complicar

E, como acontecera já no ano anterior, desejava que os primos não viessem. Sentiu, por isso, bastante tristeza. Percebia que a pouco e pouco os primos começavam a tornar-se estranhos aos seus olhos. Essa constatação entristecia-a. Era como se repentinamente tivesse cortado com a sua infância, com tudo o que nela era belo e delicioso.

Tinha saudade do tempo em que contava ansiosamente os dias que faltavam para a sua chegada.

Para grande espanto de todos no Sábado seguinte Joana levantou-se muito cedo. Queria ir com António e Maria fazer a rega da enorme plantação de batatas. Esta devia de ser regada pela manhãzinha, antes que o sol aquecesse a terra para evitar que a água amornasse pois segundo os criados, isso faria apodrecer as batatas.

O silêncio da manhã era tão profundo que parecia envolvê-los na sua frescura. O eco dos seus passos era tão arrastado que parecia prolongar-se por toda a quinta. Os pássaros cantavam fascinados pela luz do nascer do dia. Por todo o lado havia magníficos botões que desabrochavam sedosos e perfumados.

Enquanto caminhavam, Joana perguntava a si própria porque motivo decidira levantar-se tão cedo para vir com os dois criados pois na verdade nunca se interessara muito pelas tarefas do campo. Ainda por cima os dois criados falavam muito pouco…o que dava à viagem um ar monótono e cansativo…

No mais profundo de si, Joana concluiu que inconscientemente o fizera na esperança de encontrar uma luz para aquela situação que tanto a angustiava.

 

 

 

 

 

 

                                                                         IX

 

À tarde fez o seu passeio habitual pela quinta. E, contrariamente ao que sempre acontecia, meteu o lanche na cesta de verga mas esqueceu-se de o levar. Matilde apercebeu-se que esta o deixara em cima da mesa da cozinha. Achou estranho pois isso nunca acontecera. Por isso, quando a meio da tarde foi levar a merenda aos trabalhadores que sulfatavam as vinhas, levou consigo a cesta de Joana.

Deu uma volta pela quinta. Depressa a encontrou completamente adormecida debaixo do carvalho que se encontrava junto do portão que dava acesso aos estábulos. Sentou-se ao seu lado esperando que esta acordasse.

Quando acordou, Joana ficou bastante assustada ao ver a criada sentada ao seu lado sem dizer nada.

Matilde aproximou-se um pouco. Colocou as mãos de Joana no seu regaço e, olhando-a com um ar carinhoso disse-lhe:

– A menina parece muito preocupada. Quase não fala e refugia-se no seu quarto. É muito pequena para tanta preocupação. Não gosto de a ver assim.

E perante o olhar espantadíssimo de Matilde Joana irrompeu em soluços tão profundos que a velha criada se sentiu indefesa.

E, rogando-lhe que não contasse nada a ninguém, Joana contou-lhe detalhadamente tudo que o peixe lhe contara.

A velha criada apenas se resumiu a dizer:

– A menina não podia fazer de outra maneira. Aliás soube-o desde sempre. Eu vi a menina nascer! Sabia que não agiria de outra forma.

– É tudo muito estranho, não é? Tu acreditas no que te contei, Matilde?

– Conheço muito bem a menina. Nunca mente e não sabe mentir…

– Como poderei ajudar o meu peixe?

– Iremos encontrar uma solução. É tudo uma questão de tempo e de persistência tenho a certeza. Sabe o que não tem solução?

– A morte –  respondeu sorrindo animada. – Foi isso que eu disse ao meu amigo peixe há poucos dias.

– Vou reflectir com profundidade. Não podemos tomar uma atitude leviana que nos levaria a caminhos sem saída. Agora o seu amigo peixe também é meu amigo. Eu também sou responsável por tudo o que lhe acontecer. Doravante será uma preocupação a três.

A partir desse momento estabeleceu-se entre ambas uma cumplicidade tão grande mas tão discreta que ninguém acreditaria ser recente.

No dia seguinte, Joana foi ao rio buscar a pérola, esperançada que Matilde pudesse encontrar uma lógica naquela sequência de números e de códigos. Mas foi com grande mágoa que a velha criada lhe confessou que não sabia ler o que fora para si sempre uma grande tristeza pois apenas podia observar as imagens dos livros de receitas que se encontravam nas prateleiras da cozinha.

Os dias iam passando.

Matilde tornava-se cada vez mais pensativa. Executava as tarefas da casa com grande lentidão, e com ar muito compenetrado. Fazia com frequência pequenas causas que nela não eram nada habituais. Muitas foram as vezes que Joana temeu que os pais ou os criados se apercebessem de alguma coisa.

Era Domingo. Joana levantou-se como habitualmente para ir à missa.

Mas aquele dia noutros tempos tão esperado tinha perdido todo o seu encanto.

Quando chegaram a casa seguiu Matilde até ao quarto para que esta retirasse as suas roupas domingueiras. De seguida dirigiram-se para debaixo do alpendre para acender o forno de lenha e assar o habitual cabrito.

O calor do forno afogueava a cara da velha criada, o que lhe dava um ar ainda mais abatido.

Esta lacrou a porta do forno com a bosta de boi como fazia habitualmente. Acabada a tarefa, sentou-se no banco de madeira que utilizava para regar os vasos de avenca e de begónias que estavam suspensos na parede.

Depois sentou Joana no seu colo e disse-lhe com ar aparentemente calmo:

– Tenho pensado muito e só tenho uma alternativa. Não podemos perder mais tempo…

– Qual é? – perguntou Joana com a voz a tremer.

– Sábado é dia de feira. Farei tudo para que os outros criados não vão connosco… Sairemos de casa um pouco mais cedo. Iremos procurar a casa onde tudo se passou. O peixe partirá connosco rio acima. Vamos acompanhá-lo enquanto for possível. Tenho consciência, de que não poderemos passar por alguns locais. Mas isso depois se verá. Primeiro teremos que ver o que acontece. Sei também que é possível que o peixe já não se lembre mais dos locais por onde passou. Mas só nos podemos deixar derrotar depois da derrota.

– Mas mesmo que o peixe consiga chegar junto da quinta, ninguém nos vai abrir as portas! Tenho quase a certeza. Seremos apenas duas desconhecidas. Todo o nosso esforço será inútil e a nossa desilusão será imensa.

– Talvez tenha razão, mas não por enquanto…

– Que vais dizer para que te recebam?

– Direi que procuro emprego…Se não me quiserem receber, arrisco tudo e conto a verdade.

Não há nada maior do que a verdade…Alguém há-de entregar os códigos à pessoa a quem se destinam. Pelo que a menina me contou o desespero do dono dessas terras vai fazê-lo ceder a qualquer pedido.

E, tal como tinham combinado, partiram no Sábado seguinte.

Caminhavam silenciosos como se temessem alguma cilada. Por vezes os caminhos tornavam-se inacessíveis. Tinham por isso que se afastar da margem para se encontrarem um pouco mais além.

E, ao fim de meia hora de nado o peixe declarou com enorme alegria:

– A casa é aquela que vemos por detrás daquelas árvores. Tenho a certeza…É inconfundível… Eu não me enganaria…

Mas após alguns segundos, como se toda a consciência surgisse num relâmpago, o peixe tornou-se muito sério. Tinha os olhos vermelhos e as suas barbatanas pareciam agora muito pequenas, dir-se-ia demasiado pequenas para o seu tamanho.

– E agora que vamos fazer? Eu não sei fazer mais nada…

– Falaste-me num riacho. Teremos que o encontrar pois disseste-me que corria em direcção ao jardim. Agora que viemos teremos de fazer tudo…

– Iremos os três – disse Joana com a mesma decisão com que organizava os primos quando brincavam à cabra-cega ou ao esconde - esconde.

– Não, tu não vens – disse Matilde indicando o peixe. Ficas aqui à nossa espera. Se as coisas correrem mal é mais fácil para nós que estejas num lugar seguro.

E após alguns segundos acrescentou olhando Joana:

– Deus há-de proteger-nos, minha filha! Venha comigo! Passará por minha neta…Tudo parecerá mais verdade…

Ao fim de poucos minutos encontraram-se em frente ao portão principal, guardado por altas grades pontiagudas. Um dos criados regava cuidadosamente o grande jardim.

– Será Tomás, o criado de quem o peixe me falou? Pela descrição deve ser ele. Tem as pernas um pouco arqueadas e grandes suíças brancas…

Matilde pareceu não a ouvir. Chamou o velho homem baixinho esforçando-se para que a sua voz não traísse a sua preocupação.

Este dirigiu-se a passo apressado em direcção ao portão.

– Que querem? – perguntou ainda não tinha chegado junto do portão.

– Procuro emprego para mim e para a minha neta

– Não precisamos. Vão-se embora. Nesta casa não querem ser incomodados…

– Ele gostava do peixe – disse baixinho Joana arriscando tudo.

Matilde olhou-a para que não dissesse mais nada.

– Viemos por causa de um peixe de escamas prateadas e brilhantes e por causa de uma pequena pérola branca com algumas letras lá dentro. Não sabemos o que dizem as letras –

 disse  Joana tremendo e indicando a mão da criada.

– Já não há peixes cá em casa há muito tempo. Retirem-se já vos disse…

– Estou a falar do peixe que estava em cima do aquário de ébano – disse Joana. Foi ele que me mandou entregar esta pérola que o Senhor Tomás sabe de que se trata.

Tomás, muito espantado de ouvir uma estranha pronunciar o seu nome, esticou uma mão por entre o gradeamento e, sem abrir o portão, retirou repentinamente a pérola da mão de Matilde.

Depois, sem sequer agradecer virou as costas e foi-se embora.

– Está feito – disse Joana. É horrível! Nunca saberemos o que vai acontecer ao arquitecto.

Nunca saberemos se o que fizemos serviu para alguma coisa…

– A vida é assim. Às vezes o resultado das nossas acções nem sempre é visível. Mas nós sabemos que cada acção foi uma pequena gota que levará à mudança, talvez um dia bem longe. Foi assim desde que o mundo é mundo…

Joana e Matilde foram ter com o peixe.

Sentaram-se sobre a erva.

Encolhiam os ombros completamente desalentadas. Tinham acabado de colocar na mão de um desconhecido o sonho de longos meses…

Passado algum tempo começaram a ouvir o barulho dos tambores e das gaitas. Ouviam também gritos de alegria como se repentinamente a casa tivesse acordado de um embrutecimento de séculos.

Ao longe ouviam-se vozes alegres que gritavam continuamente:

– “O Senhor é um homem doce e justo.”

Os três amigos perceberam que não havia engano possível. O arquitecto tinha sido libertado.

O prisioneiro já não era mais o prisioneiro da tirania.

 Tinham feito o que a sua alma lhes tinha mandado fazer e isso dava-lhes uma sensação esquisita mas boa.

A partir desse dia o peixe quando não estava com Joana ou com Matilde, dava longos passeios ao longo do rio, sempre esperançado de que um dia encontraria algum dos amigos com quem vivera no aquário para com eles poder compartilhar todas as vivências e adversidades que tinham trazido brilho à sua vida.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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